Vestido de Noiva
(ou Despedida de Solteiro)
Era um Sábado. Nem chuva, nem sol: um dia morno, nublado e sem muitos atrativos. Milhares de pessoas queriam estar em casa, ao sofá, na sala, dormindo; mas Creuza estava ansiosa. Muito ansiosa. Havia exatamente uma semana para o seu casamento...
Creuza chegara em São Paulo há pouco mais de dois anos, e, ainda na rodoviária, conhecera Nonato, outro migrante que viera tentar a sorte aqui na capital paulista. Ele então a convidara para tomar um café, pois gostou dela. Faceira, sorridente e aparentemente feliz, ela era exatamente o oposto dele que, sofrido, simplório, não demonstrava em seu rosto um interesse maior pela vida. Veio à São Paulo para tentar uma melhor sorte. Sua família padecia de muita pobreza em Euclides da Cunha no sertão baiano. Já Creuza, tinha uma situação melhor, não sofria fome, nem enfermidades. Creuza viera à São Paulo, partindo dos arredores de Vitória da Conquista, também no interior baiano, em busca de um sonho, de uma fantasia. Ela queria um namorado – um marido, queria ver luzes de neon, gente bonita. As luzes da Paulista, a cada reveillón, hipnotizavam a mente sonhadora de Creuza, já Nonato, quase que via o mundo em preto e branco.
É sabido que a vida dos migrantes na cidade grande não é das mais fáceis e, com eles, não foi diferente. Após o encontro na rodoviária do Tietê, sem dúvida, tiveram de partir para o trabalho. Nonato fora acolhido por uma prima que residia na capital há mais de década, já estava casada e tinha cinco filhos. Seu marido, João, era motorista de ônibus numa linha distante do terminal João Dias no extremo sul paulistano, com isso moravam por lá, às margens da favela do Paraisópolis. Creuza fora recebida por uns tios que por aqui já estão desde os anos sessenta, mas não deu certo. A velha era crente, evangélica, muito radical e conservadora. Por conta disso não aceitava o estilo faceiro e pueril de Creuza que logo percebeu as dificuldades de convivência. Então foi, além das necessidades de sobrevivência, somados às dificuldades de convivência, que começou a trabalhar como balconista numa bomboniere da avenida Liberdade e locou uma vaga numa pensão do mesmo bairro.
Os encontros com Nonato eram discretos e tímidos, eles hesitavam em iniciar um namoro, embora andassem de mãos dadas pelos diversos passeios que faziam aos domingos no vale do Anhangabaú, na praça da República e no parque da Aclimação. Nonato, diferente de Creuza, ainda não havia arrumado um emprego fixo e isso o inibia a assumir um namoro com Creuza, afinal não poderia comprar a ela nenhum presente significativo ou levá-la à passeios mais interessantes do que as caminhadas vespertinas regadas a sorvete barato. O baiano de Euclides da Cunha vivia de bicos na construção civil. Ganhava por dia e por expediente. Isso não o dava a segurança necessária para pedir a jovem em namoro.
Esta amizade, digamos, colorida manteve-se ativa por pelo menos um ano. E neste ano alguns carinhos aconteceram entre eles. Ora num forró, ora no parque, mãos dadas avançavam os limites do coleguismo e inspiravam, em ambos, fantasias românticas dignas das telenovelas que tanto um como o outro assistiam diariamente antes de ir dormir.
Creuza, cheia de criatividade afetiva acreditava que um dia o seu amado Raimundo Nonato da Silva iria se declarar e pedi-la não só em namoro, mas em casamento. Vira numa novela qualquer o início do romance da filha dos empregados com o dono da mansão e isso lhe fizera bem.
Num Domingo qualquer, resolveu chamar Edileuza, sua companheira de beliche na pensão para visitar algumas lojas de roupas para noivos. Ela havia visto um anúncio numa revista e sabia que na rua São Caetano, na região da Estação da Luz e da Pinacoteca haveria de ter diversas. Foram até lá.
No mesmo Domingo, como que por um milagre, Nonato fora acordado por um empreiteiro em busca de um “pedreiro de mão cheia” que fosse limpo, honesto, barato e sóbrio. Não beber era condição eliminatória para assumir o novo emprego. Era uma obra grande de longa duração: um edifício na região do Tatuapé, região nobre da zona leste da capital. Ofereciam moradia, uniformes completos, alimentação diária e retirada semanal: algo próximo aos trezentos reais que julgava necessário para formar um salário de mais de mil e com isso poder comprar as alianças e arriscar o pedido de casamento à sua amada.
Correu logo que fechou o negócio para a pensão lá na Liberdade. Nonato não podia chamar as moças no portão pois a dona da moradia, dona Edivirges, não permitia. Afinal, não ficava bem, numa casa de moças de fino trato, receber visitas masculinas. Portanto, ao desembarcar no largo João Mendes, foi a um orelhão e telefonou para a pensão:
- Alô...
- Pensionato Liberdade, boa tarde...
- Dona Edivirges, é o Nonato, amigo da Creuzinha, ela “tá”aí ?
- Tá não, meu “fio”... Saiu com Edileuza pra ver vestido de noiva lá na Luz...
Inseguro com a notícia, mil coisas passaram pela cabeça do pedreiro. Pensou: “Será que ela arrumou outro??? Será que nunca me tratou como namorado porque já tinha um pretendente ???...” Mil perguntas se fizeram pertinentes e claro, assustadoras. Raimundo nem sequer desligou o telefone ou se despediu da anciã. Deixou o fone pendurado pelo cabo no orelhão e rumou sem rumo pela praça da Sé. Viu uma pastelaria antiga onde se sentou e pediu, coisa que não fazia há muito, uma cachacinha. Bebeu de um só trago, tomou a segunda, a terceira, pagou e logo ali ao lado, na Barão de Paranapiacaba, anúncios de alianças e outras jóias o fizeram colérico e muito descrente da própria felicidade. Bradou um gemido indecifrável e se direcionou ao ponto do Santo Amaro. Tomou o coletivo, dormiu e sem sonhar com Creuza, acordou no final, onde se baldeou para o João Dias.
Creuza já havia visto mais de cem vestidos: brancos, pérolas, cremes, com detalhes bordados, com dourado, com prateado. Passou aquela manhã de Domingo sentindo-se princesa, sentindo-se a noiva de Nonato.
Cansada de caminhar, parou num botequim perto do Batalhão da Rota e dividiu com Edileuza, a própria fada madrinha, uma Coca-Cola de garrafinha e um enroladinho de presunto e queijo não muito saboroso pois havia sido esquentado num microondas. Pagou e à pé seguiu pela avenida Tiradentes sentido centro. Caminhava como se flutuasse nos sonhos: fantasia na cabeça e lágrimas nos olhos.
Ao chegar, depois de mais de hora de caminhada em sua casa, recebeu a notícia que Nonato havia ligado. Ficou feliz, mas quando soube que ele não tinha se despedido, ficou preocupada.
Tentou ligar num telefone de recados que o pedreiro havia lhe dado. Era o telefone de um bar que ficava às portas do corredor onde morava com a irmã. Ficou desiludida em saber que seu amado estava lá, no bar, alcoolizado, falando barbaridades desconexas e arrumando confusões. Mesmo assim insistiu com seu Barbosa, dono do estabelecimento, em falar com ele. Ele atendeu...
- Quem é?
- Sou eu, Nonato, a Creuza...
- Que “cê qué”??? Me convidar para o seu casamento?
- Que casamento? Retrucou a balconista.
- Já sei de tudo, sua vadia, já sei que vai se casar e foi até ver o vestido...
Neste momento inusitado, ela riu, e riu bastante. Gargalhou.
- Nonato, me ouve... Não vou casar não... Não tenho nem noivo...
Pela segunda vez no mesmo dia, Nonato deixou cair o telefone, não respondeu nada, nem se despediu. Cambaleou bêbado por uns três metros e caiu sobre outros fregueses que lhe levaram até sua irmã, que lhe deu banho, café e lhe fez orações.
Veio a semana e com ela os compromissos. Creuza na bomboniere e Nonato preparando-se para o novo emprego.
Na Quarta-feira resolveu, voltando do Tatuapé onde fora conhecer a obra, visitar Creuza no comércio e por conseguinte convidá-la para um passeio – um sorvete, como de costume – na avenida Paulista.
Passou primeiro na rua onde vira os anúncios de jóias e alianças. Comprou um par bonito, porém bem em conta. Iria pagar em vezes. Mandou gravar os nomes. Na esquina comprou dois pastéis de palmito e subiu a ladeira.
Quando embicou na avenida Liberdade seu coração disparou. Olhou em frente e viu a menos de cinqüenta metros o display da bomboniere. Creuza estava lá, ansiosa, como se soubesse da visita de Nonato. Ela olhava para o horizonte, olhar fixo, com olhos de asfalto, os dele, de mercúrio.
Em alguns segundos ele estava lá frente a frente com sua amada. Creuza com seus olhos de asfalto não o vira. Assustou-se por um instante:
- Que surpresa !!! Você por aqui ???
- É... Eu vim... Já vai sair? Perguntou um tanto quanto encabulado.
- Sim... Sim... já deu meu horário.
Nisso fez um aceno de espera para Raimundo e correu para trás do balcão donde tirou sua bolsa, e dela um batom “Avon”, retocou-se ali mesmo na frente da freguesia e aos pulinhos se despediu das colegas que ainda fariam hora-extra.
Quando atingiu a calçada viu Nonato tremendo muito com uma sacola plástica numa das mãos e uma caixinha aveludada noutra.
- Você gosta de pastel de palmito? Perguntou o pedreiro recém empregado.
- Gosto... Respondeu Creuza toda envergonhada.
- Então tó... Falou-lhe Raimundo Nonato entregando-lhe o embrulho.
- Mas assim, aqui? Guarde, vamos comer depois...
- E isso na sua outra mão, o que é? Perguntou referindo-se à caixinha aveludada.
Nonato gaguejando muito e desviando o olhar até tentou mudar de assunto. Tomou fôlego e de uma só disse:
- Já que você não tem noivo, nem namorado esse tempo todo eu pensei...
- O que você pensou? Perguntou Creuza interrompendo seu conterrâneo.
Nisso ele abriu a caixinha e mostrando as alianças para Creuza, pediu-a em casamento...
- Quer casar comigo, Creuzinha???
Repleta de lágrimas nos olhos, Creuza aceitou com um sim feito com a cabeça e beijou delicadamente a boca de Raimundo.
Nenhum dos dois estavam acostumados a beijos públicos, eram ambos muito acanhados e logo em seguida encabularam-se e de braços dados, saíram à passos largos dali. Nem perceberam que as meninas da bomboniere, assim como demais transeuntes estavam a aplaudir freneticamente o romance dos dois.
Foram à Paulista, comeram os pastéis já frios no bulevar das Caixas Econômicas, tomaram sorvete no Trianon e começaram, sentados num banco do mesmo parque, a elaborar os planos que davam sustentação ao casamento deles.
Isso tudo ocorrera em meados de janeiro ou fevereiro. Creuza sonhadora e faceira não queria casar-se num mês que não fosse maio e isso preocupava Nonato que não via a hora de desposar sua noiva que por sua vez queria casar-se virgem e imaculada.
Por conta deste sonho, até os beijos eram comedidos. Creuza evitava que Raimundo avançasse sobre ela com carinhos muito sensuais.
A relação permaneceu assim, morna e respeitosa até meados de abril, quando ambos não mais agüentaram os pedidos do corpo e quase escorregaram no propósito. Houve uma briga terrível e só faltavam cinco semanas para o casamento.
Neste ínterim resolveram se ver o menos possível e priorizar os preparativos para o casamento – era uma forma de controlar os descontroles do corpo e as tentações – e ao mesmo tempo dar a Nonato a chance de fazer eternas horas extras para que conseguisse juntar o dinheiro necessário para quitar as dívidas com a floricultura, com seu Barbosa, que lhe vendera a cerveja e os espetinhos para a festa e do passeio que fariam à Itanhaém, no litoral paulista.
Um outro problema era o vestido de noiva. Creuza estava desolada com os preços astronômicos dos vestidos da rua São Caetano e em lugares mais simples não encontrava um que satisfizesse sua vaidade – única vaidade.
Edileuza, as meninas da bomboniere, outras colegas de pensão não se cansavam em pesquisar por aí preços módicos para vestidos até bem arranjados, mas nenhum encantava Creuza.
Um dia, depois de uma jornada de serviço árduo na loja de doces, dona Edivirges chamou Creuza em seu quarto. A moça estava na sala de TV quase adormecendo quando a velha a chamou.
- Creuza, suba !
- Já vou, senhora...
Creuza logo subiu as escadas de madeira de assoalho para o segundo andar do velho casarão e, quando deparou-se com a porta do quarto da anciã, notou que estava aberto. Chamou:
- Dona Edivirges???
- Entre, minha baianinha linda...
- O que deseja? Ia perguntando educadamente a pensionista quando notou que sobre a cama de dona Edivirges havia uma caixa aberta.
Era um vestido de noiva, com muito cheiro de naftalina, mas novinho e sem nenhuma mancha. Creuza ficou encantada.
Era lindo, bojado, todo trabalhado em pedrarias e parecia algo moderno – não teria sido da velha. Observou sem tocar no tecido e, a cada olhadela, ficava mais impressionada com a indumentária. Parecia ter sido feito para ela, precisava de pouquíssimos ajustes, se é que precisava.
Dona Edivirges explicou que aquele vestido pertencera à Rute, uma moça que viera do Norte uns anos antes e que conhecera um rapaz jovem, próspero e belo com que iria se casar. Mas o rapaz, motorista de praça, sofrera um acidente grave e veio a falecer poucos dias antes do casamento. Rute, desesperada, deu de beber e se envolveu com drogas, nunca esqueceu seu noivo e com isso não mais quis saber de se casar. Diziam que Rute envolveu-se com gigolôs da boca do lixo e que ganhava a vida com programas baratos para homens muito simples que não podiam pagar por prostitutas mais luxuosas.
Creuza ouviu a história sem dar muita importância e, crendo que águas passadas não movem moinhos, pediu o vestido para a velha que, sem hesitação entregou-o à balconista.
Era sexta-feira, faltavam oito dias para o casamento de Nonato e Creuza. Os colegas da construção já haviam dado a ele uma porção de presentes. A casinha onde iriam morar estava decorada e mobiliada; claro, com presentes simples, móveis baratos, mas de bom gosto. Tudo pronto, só faltava a despedida de solteiro.
Os rapazes então se juntaram ao lado de Nonato e o convenceram a ir num bordel na região central, num destes teatros de sexo explícito. Foram.
Chegando lá, bem na avenida Rio Branco, foram recepcionados por garotas fora do peso e biquínis minúsculos. Nonato pensou em desistir, mas cedeu às insistências dos colegas. Entrou. Ao entrar viu moças rebolando sobre as mesas onde se tomava uísque à vontade. Pediram uma garrafa, sentaram e em instantes os colegas de Raimundo trouxeram até ele uma prostituta de uns trinta anos, assim como ele, morena, bonita, com curvas acentuadas e com uma leve semelhança com Creuza. Houve um encanto imediato.
Depois de umas doses e umas reboladas a prostituta já havia conseguido seu objetivo maior: alçar mais um cliente. Nonato estava aparvalhado com a sedução da meretriz. Subiu com ela para um quarto.
Ao entrar no recinto, antes ainda de despir-se, Nonato insistiu em beijar a prostituta que, por razões éticas não permitiu. Como não conseguiu o tal beijo, iniciou um interrogatório com a moça. Perguntou-lhe desde o nome verdadeiro, até o motivo que a levara à prostituição. O pedreiro não se conformava com a formosidade da moça e principalmente com a semelhança que ela possuía com Creuza.
Aos poucos ela foi se soltando e se abrindo. Fizeram um pacto: ele falava sobre ele mesmo e ela sobre ela mesma. Foi aí que Nonato descobriu seu nome - Rute, sua idade - vinte e oito anos, o motivo da prostituição - uma viuvez precoce, entre outras curiosidades.
Transou com ela como se fosse virgem, entregou-se ao extremo, confessou palavras ébrias de carinho e por fim, como não estava acostumado com tantos excessos, dormiu.
Já era Sábado.
Nem chuva, nem sol: um dia morno e nublado e sem muitos atrativos. Milhares de pessoas queriam estar em casa, ao sofá, na sala, dormindo; Creuza ansiosa e Nonato de ressaca, dormindo.
Tudo levava a crer que ele esquecera do casamento, de Creuza e de seu amor. Só lembrava das curvas inebriantes da meretriz que lhe acompanhara na noite anterior. Naquele Sábado, Creuza foi à costureira fazer os últimos ajustes e Nonato, voltou ao prostíbulo.
Não se falaram, Creuza achou normal. Nonato não achou nada. Veio o Domingo e mais uma noite fora de casa. Nonato só voltou para o alojamento da obra na segunda cedo, cheirando uma mistura de uísque com perfume barato. Voltou sem dinheiro. Sem o dinheiro do passeio, sem o dinheiro da floricultura. Não devia sequer ter voltado. Seus colegas estavam preocupados com o sumiço do pedreiro mas, mesmo assim, evitaram fazerem-lhe muitas perguntas.
Naquela segunda-feira Creuza trabalhou com o olho no telefone e nada de receber uma ligação. Para ela, estava tudo pronto, só precisava saber de seu noivo. Seu paradeiro, se estava tudo bem e ele não ligava.
Enfim chegou o Sábado. O casamento seria por volta das dezoito horas na paróquia Santo Antônio de Lisboa no bairro do Tatuapé. A costureira da Moóca já aguardava a noiva e ainda eram nove da manhã. Ela ainda faria o cabelo, as unhas e uma limpeza de pele. Nonato só ligou uma vez, na quinta-feira e confirmou tudo.
Meio-dia. Toca o telefone na casa da costureira. Era dona Edivirges, atônita. Pediu para falar com Creuza que, ressabiada atendeu... Não haveria mais casamento. Ao menos ela não se casaria mais.
Alguém ligara pela manhã e disse que havia acontecido uma tragédia. Que Nonato não estava bem e precisava de ajuda. Era mentira. Ele estava bem, quem não estava era a mulher que estava com ele, que não acordou naquele dia. Foi encontrada esfaqueada num motel da Barra Funda. Os registros de hóspedes eram claros, naquele quarto de número vinte e sete estiveram juntos e presentes os seguintes cidadãos: Raimundo Nonato da Silva e Rute Aparecida de Souza e, pela manhã, só uma pessoa estava lá – Rute, a antiga dona do vestido de noiva.
Rodrigo Augusto Fiedler
(ou Despedida de Solteiro)
Era um Sábado. Nem chuva, nem sol: um dia morno, nublado e sem muitos atrativos. Milhares de pessoas queriam estar em casa, ao sofá, na sala, dormindo; mas Creuza estava ansiosa. Muito ansiosa. Havia exatamente uma semana para o seu casamento...
Creuza chegara em São Paulo há pouco mais de dois anos, e, ainda na rodoviária, conhecera Nonato, outro migrante que viera tentar a sorte aqui na capital paulista. Ele então a convidara para tomar um café, pois gostou dela. Faceira, sorridente e aparentemente feliz, ela era exatamente o oposto dele que, sofrido, simplório, não demonstrava em seu rosto um interesse maior pela vida. Veio à São Paulo para tentar uma melhor sorte. Sua família padecia de muita pobreza em Euclides da Cunha no sertão baiano. Já Creuza, tinha uma situação melhor, não sofria fome, nem enfermidades. Creuza viera à São Paulo, partindo dos arredores de Vitória da Conquista, também no interior baiano, em busca de um sonho, de uma fantasia. Ela queria um namorado – um marido, queria ver luzes de neon, gente bonita. As luzes da Paulista, a cada reveillón, hipnotizavam a mente sonhadora de Creuza, já Nonato, quase que via o mundo em preto e branco.
É sabido que a vida dos migrantes na cidade grande não é das mais fáceis e, com eles, não foi diferente. Após o encontro na rodoviária do Tietê, sem dúvida, tiveram de partir para o trabalho. Nonato fora acolhido por uma prima que residia na capital há mais de década, já estava casada e tinha cinco filhos. Seu marido, João, era motorista de ônibus numa linha distante do terminal João Dias no extremo sul paulistano, com isso moravam por lá, às margens da favela do Paraisópolis. Creuza fora recebida por uns tios que por aqui já estão desde os anos sessenta, mas não deu certo. A velha era crente, evangélica, muito radical e conservadora. Por conta disso não aceitava o estilo faceiro e pueril de Creuza que logo percebeu as dificuldades de convivência. Então foi, além das necessidades de sobrevivência, somados às dificuldades de convivência, que começou a trabalhar como balconista numa bomboniere da avenida Liberdade e locou uma vaga numa pensão do mesmo bairro.
Os encontros com Nonato eram discretos e tímidos, eles hesitavam em iniciar um namoro, embora andassem de mãos dadas pelos diversos passeios que faziam aos domingos no vale do Anhangabaú, na praça da República e no parque da Aclimação. Nonato, diferente de Creuza, ainda não havia arrumado um emprego fixo e isso o inibia a assumir um namoro com Creuza, afinal não poderia comprar a ela nenhum presente significativo ou levá-la à passeios mais interessantes do que as caminhadas vespertinas regadas a sorvete barato. O baiano de Euclides da Cunha vivia de bicos na construção civil. Ganhava por dia e por expediente. Isso não o dava a segurança necessária para pedir a jovem em namoro.
Esta amizade, digamos, colorida manteve-se ativa por pelo menos um ano. E neste ano alguns carinhos aconteceram entre eles. Ora num forró, ora no parque, mãos dadas avançavam os limites do coleguismo e inspiravam, em ambos, fantasias românticas dignas das telenovelas que tanto um como o outro assistiam diariamente antes de ir dormir.
Creuza, cheia de criatividade afetiva acreditava que um dia o seu amado Raimundo Nonato da Silva iria se declarar e pedi-la não só em namoro, mas em casamento. Vira numa novela qualquer o início do romance da filha dos empregados com o dono da mansão e isso lhe fizera bem.
Num Domingo qualquer, resolveu chamar Edileuza, sua companheira de beliche na pensão para visitar algumas lojas de roupas para noivos. Ela havia visto um anúncio numa revista e sabia que na rua São Caetano, na região da Estação da Luz e da Pinacoteca haveria de ter diversas. Foram até lá.
No mesmo Domingo, como que por um milagre, Nonato fora acordado por um empreiteiro em busca de um “pedreiro de mão cheia” que fosse limpo, honesto, barato e sóbrio. Não beber era condição eliminatória para assumir o novo emprego. Era uma obra grande de longa duração: um edifício na região do Tatuapé, região nobre da zona leste da capital. Ofereciam moradia, uniformes completos, alimentação diária e retirada semanal: algo próximo aos trezentos reais que julgava necessário para formar um salário de mais de mil e com isso poder comprar as alianças e arriscar o pedido de casamento à sua amada.
Correu logo que fechou o negócio para a pensão lá na Liberdade. Nonato não podia chamar as moças no portão pois a dona da moradia, dona Edivirges, não permitia. Afinal, não ficava bem, numa casa de moças de fino trato, receber visitas masculinas. Portanto, ao desembarcar no largo João Mendes, foi a um orelhão e telefonou para a pensão:
- Alô...
- Pensionato Liberdade, boa tarde...
- Dona Edivirges, é o Nonato, amigo da Creuzinha, ela “tá”aí ?
- Tá não, meu “fio”... Saiu com Edileuza pra ver vestido de noiva lá na Luz...
Inseguro com a notícia, mil coisas passaram pela cabeça do pedreiro. Pensou: “Será que ela arrumou outro??? Será que nunca me tratou como namorado porque já tinha um pretendente ???...” Mil perguntas se fizeram pertinentes e claro, assustadoras. Raimundo nem sequer desligou o telefone ou se despediu da anciã. Deixou o fone pendurado pelo cabo no orelhão e rumou sem rumo pela praça da Sé. Viu uma pastelaria antiga onde se sentou e pediu, coisa que não fazia há muito, uma cachacinha. Bebeu de um só trago, tomou a segunda, a terceira, pagou e logo ali ao lado, na Barão de Paranapiacaba, anúncios de alianças e outras jóias o fizeram colérico e muito descrente da própria felicidade. Bradou um gemido indecifrável e se direcionou ao ponto do Santo Amaro. Tomou o coletivo, dormiu e sem sonhar com Creuza, acordou no final, onde se baldeou para o João Dias.
Creuza já havia visto mais de cem vestidos: brancos, pérolas, cremes, com detalhes bordados, com dourado, com prateado. Passou aquela manhã de Domingo sentindo-se princesa, sentindo-se a noiva de Nonato.
Cansada de caminhar, parou num botequim perto do Batalhão da Rota e dividiu com Edileuza, a própria fada madrinha, uma Coca-Cola de garrafinha e um enroladinho de presunto e queijo não muito saboroso pois havia sido esquentado num microondas. Pagou e à pé seguiu pela avenida Tiradentes sentido centro. Caminhava como se flutuasse nos sonhos: fantasia na cabeça e lágrimas nos olhos.
Ao chegar, depois de mais de hora de caminhada em sua casa, recebeu a notícia que Nonato havia ligado. Ficou feliz, mas quando soube que ele não tinha se despedido, ficou preocupada.
Tentou ligar num telefone de recados que o pedreiro havia lhe dado. Era o telefone de um bar que ficava às portas do corredor onde morava com a irmã. Ficou desiludida em saber que seu amado estava lá, no bar, alcoolizado, falando barbaridades desconexas e arrumando confusões. Mesmo assim insistiu com seu Barbosa, dono do estabelecimento, em falar com ele. Ele atendeu...
- Quem é?
- Sou eu, Nonato, a Creuza...
- Que “cê qué”??? Me convidar para o seu casamento?
- Que casamento? Retrucou a balconista.
- Já sei de tudo, sua vadia, já sei que vai se casar e foi até ver o vestido...
Neste momento inusitado, ela riu, e riu bastante. Gargalhou.
- Nonato, me ouve... Não vou casar não... Não tenho nem noivo...
Pela segunda vez no mesmo dia, Nonato deixou cair o telefone, não respondeu nada, nem se despediu. Cambaleou bêbado por uns três metros e caiu sobre outros fregueses que lhe levaram até sua irmã, que lhe deu banho, café e lhe fez orações.
Veio a semana e com ela os compromissos. Creuza na bomboniere e Nonato preparando-se para o novo emprego.
Na Quarta-feira resolveu, voltando do Tatuapé onde fora conhecer a obra, visitar Creuza no comércio e por conseguinte convidá-la para um passeio – um sorvete, como de costume – na avenida Paulista.
Passou primeiro na rua onde vira os anúncios de jóias e alianças. Comprou um par bonito, porém bem em conta. Iria pagar em vezes. Mandou gravar os nomes. Na esquina comprou dois pastéis de palmito e subiu a ladeira.
Quando embicou na avenida Liberdade seu coração disparou. Olhou em frente e viu a menos de cinqüenta metros o display da bomboniere. Creuza estava lá, ansiosa, como se soubesse da visita de Nonato. Ela olhava para o horizonte, olhar fixo, com olhos de asfalto, os dele, de mercúrio.
Em alguns segundos ele estava lá frente a frente com sua amada. Creuza com seus olhos de asfalto não o vira. Assustou-se por um instante:
- Que surpresa !!! Você por aqui ???
- É... Eu vim... Já vai sair? Perguntou um tanto quanto encabulado.
- Sim... Sim... já deu meu horário.
Nisso fez um aceno de espera para Raimundo e correu para trás do balcão donde tirou sua bolsa, e dela um batom “Avon”, retocou-se ali mesmo na frente da freguesia e aos pulinhos se despediu das colegas que ainda fariam hora-extra.
Quando atingiu a calçada viu Nonato tremendo muito com uma sacola plástica numa das mãos e uma caixinha aveludada noutra.
- Você gosta de pastel de palmito? Perguntou o pedreiro recém empregado.
- Gosto... Respondeu Creuza toda envergonhada.
- Então tó... Falou-lhe Raimundo Nonato entregando-lhe o embrulho.
- Mas assim, aqui? Guarde, vamos comer depois...
- E isso na sua outra mão, o que é? Perguntou referindo-se à caixinha aveludada.
Nonato gaguejando muito e desviando o olhar até tentou mudar de assunto. Tomou fôlego e de uma só disse:
- Já que você não tem noivo, nem namorado esse tempo todo eu pensei...
- O que você pensou? Perguntou Creuza interrompendo seu conterrâneo.
Nisso ele abriu a caixinha e mostrando as alianças para Creuza, pediu-a em casamento...
- Quer casar comigo, Creuzinha???
Repleta de lágrimas nos olhos, Creuza aceitou com um sim feito com a cabeça e beijou delicadamente a boca de Raimundo.
Nenhum dos dois estavam acostumados a beijos públicos, eram ambos muito acanhados e logo em seguida encabularam-se e de braços dados, saíram à passos largos dali. Nem perceberam que as meninas da bomboniere, assim como demais transeuntes estavam a aplaudir freneticamente o romance dos dois.
Foram à Paulista, comeram os pastéis já frios no bulevar das Caixas Econômicas, tomaram sorvete no Trianon e começaram, sentados num banco do mesmo parque, a elaborar os planos que davam sustentação ao casamento deles.
Isso tudo ocorrera em meados de janeiro ou fevereiro. Creuza sonhadora e faceira não queria casar-se num mês que não fosse maio e isso preocupava Nonato que não via a hora de desposar sua noiva que por sua vez queria casar-se virgem e imaculada.
Por conta deste sonho, até os beijos eram comedidos. Creuza evitava que Raimundo avançasse sobre ela com carinhos muito sensuais.
A relação permaneceu assim, morna e respeitosa até meados de abril, quando ambos não mais agüentaram os pedidos do corpo e quase escorregaram no propósito. Houve uma briga terrível e só faltavam cinco semanas para o casamento.
Neste ínterim resolveram se ver o menos possível e priorizar os preparativos para o casamento – era uma forma de controlar os descontroles do corpo e as tentações – e ao mesmo tempo dar a Nonato a chance de fazer eternas horas extras para que conseguisse juntar o dinheiro necessário para quitar as dívidas com a floricultura, com seu Barbosa, que lhe vendera a cerveja e os espetinhos para a festa e do passeio que fariam à Itanhaém, no litoral paulista.
Um outro problema era o vestido de noiva. Creuza estava desolada com os preços astronômicos dos vestidos da rua São Caetano e em lugares mais simples não encontrava um que satisfizesse sua vaidade – única vaidade.
Edileuza, as meninas da bomboniere, outras colegas de pensão não se cansavam em pesquisar por aí preços módicos para vestidos até bem arranjados, mas nenhum encantava Creuza.
Um dia, depois de uma jornada de serviço árduo na loja de doces, dona Edivirges chamou Creuza em seu quarto. A moça estava na sala de TV quase adormecendo quando a velha a chamou.
- Creuza, suba !
- Já vou, senhora...
Creuza logo subiu as escadas de madeira de assoalho para o segundo andar do velho casarão e, quando deparou-se com a porta do quarto da anciã, notou que estava aberto. Chamou:
- Dona Edivirges???
- Entre, minha baianinha linda...
- O que deseja? Ia perguntando educadamente a pensionista quando notou que sobre a cama de dona Edivirges havia uma caixa aberta.
Era um vestido de noiva, com muito cheiro de naftalina, mas novinho e sem nenhuma mancha. Creuza ficou encantada.
Era lindo, bojado, todo trabalhado em pedrarias e parecia algo moderno – não teria sido da velha. Observou sem tocar no tecido e, a cada olhadela, ficava mais impressionada com a indumentária. Parecia ter sido feito para ela, precisava de pouquíssimos ajustes, se é que precisava.
Dona Edivirges explicou que aquele vestido pertencera à Rute, uma moça que viera do Norte uns anos antes e que conhecera um rapaz jovem, próspero e belo com que iria se casar. Mas o rapaz, motorista de praça, sofrera um acidente grave e veio a falecer poucos dias antes do casamento. Rute, desesperada, deu de beber e se envolveu com drogas, nunca esqueceu seu noivo e com isso não mais quis saber de se casar. Diziam que Rute envolveu-se com gigolôs da boca do lixo e que ganhava a vida com programas baratos para homens muito simples que não podiam pagar por prostitutas mais luxuosas.
Creuza ouviu a história sem dar muita importância e, crendo que águas passadas não movem moinhos, pediu o vestido para a velha que, sem hesitação entregou-o à balconista.
Era sexta-feira, faltavam oito dias para o casamento de Nonato e Creuza. Os colegas da construção já haviam dado a ele uma porção de presentes. A casinha onde iriam morar estava decorada e mobiliada; claro, com presentes simples, móveis baratos, mas de bom gosto. Tudo pronto, só faltava a despedida de solteiro.
Os rapazes então se juntaram ao lado de Nonato e o convenceram a ir num bordel na região central, num destes teatros de sexo explícito. Foram.
Chegando lá, bem na avenida Rio Branco, foram recepcionados por garotas fora do peso e biquínis minúsculos. Nonato pensou em desistir, mas cedeu às insistências dos colegas. Entrou. Ao entrar viu moças rebolando sobre as mesas onde se tomava uísque à vontade. Pediram uma garrafa, sentaram e em instantes os colegas de Raimundo trouxeram até ele uma prostituta de uns trinta anos, assim como ele, morena, bonita, com curvas acentuadas e com uma leve semelhança com Creuza. Houve um encanto imediato.
Depois de umas doses e umas reboladas a prostituta já havia conseguido seu objetivo maior: alçar mais um cliente. Nonato estava aparvalhado com a sedução da meretriz. Subiu com ela para um quarto.
Ao entrar no recinto, antes ainda de despir-se, Nonato insistiu em beijar a prostituta que, por razões éticas não permitiu. Como não conseguiu o tal beijo, iniciou um interrogatório com a moça. Perguntou-lhe desde o nome verdadeiro, até o motivo que a levara à prostituição. O pedreiro não se conformava com a formosidade da moça e principalmente com a semelhança que ela possuía com Creuza.
Aos poucos ela foi se soltando e se abrindo. Fizeram um pacto: ele falava sobre ele mesmo e ela sobre ela mesma. Foi aí que Nonato descobriu seu nome - Rute, sua idade - vinte e oito anos, o motivo da prostituição - uma viuvez precoce, entre outras curiosidades.
Transou com ela como se fosse virgem, entregou-se ao extremo, confessou palavras ébrias de carinho e por fim, como não estava acostumado com tantos excessos, dormiu.
Já era Sábado.
Nem chuva, nem sol: um dia morno e nublado e sem muitos atrativos. Milhares de pessoas queriam estar em casa, ao sofá, na sala, dormindo; Creuza ansiosa e Nonato de ressaca, dormindo.
Tudo levava a crer que ele esquecera do casamento, de Creuza e de seu amor. Só lembrava das curvas inebriantes da meretriz que lhe acompanhara na noite anterior. Naquele Sábado, Creuza foi à costureira fazer os últimos ajustes e Nonato, voltou ao prostíbulo.
Não se falaram, Creuza achou normal. Nonato não achou nada. Veio o Domingo e mais uma noite fora de casa. Nonato só voltou para o alojamento da obra na segunda cedo, cheirando uma mistura de uísque com perfume barato. Voltou sem dinheiro. Sem o dinheiro do passeio, sem o dinheiro da floricultura. Não devia sequer ter voltado. Seus colegas estavam preocupados com o sumiço do pedreiro mas, mesmo assim, evitaram fazerem-lhe muitas perguntas.
Naquela segunda-feira Creuza trabalhou com o olho no telefone e nada de receber uma ligação. Para ela, estava tudo pronto, só precisava saber de seu noivo. Seu paradeiro, se estava tudo bem e ele não ligava.
Enfim chegou o Sábado. O casamento seria por volta das dezoito horas na paróquia Santo Antônio de Lisboa no bairro do Tatuapé. A costureira da Moóca já aguardava a noiva e ainda eram nove da manhã. Ela ainda faria o cabelo, as unhas e uma limpeza de pele. Nonato só ligou uma vez, na quinta-feira e confirmou tudo.
Meio-dia. Toca o telefone na casa da costureira. Era dona Edivirges, atônita. Pediu para falar com Creuza que, ressabiada atendeu... Não haveria mais casamento. Ao menos ela não se casaria mais.
Alguém ligara pela manhã e disse que havia acontecido uma tragédia. Que Nonato não estava bem e precisava de ajuda. Era mentira. Ele estava bem, quem não estava era a mulher que estava com ele, que não acordou naquele dia. Foi encontrada esfaqueada num motel da Barra Funda. Os registros de hóspedes eram claros, naquele quarto de número vinte e sete estiveram juntos e presentes os seguintes cidadãos: Raimundo Nonato da Silva e Rute Aparecida de Souza e, pela manhã, só uma pessoa estava lá – Rute, a antiga dona do vestido de noiva.
Rodrigo Augusto Fiedler
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