Cinza
Não me lembro mais da última coisa colorida que vi. Há muito meus dias são cinzas, dizem que sou daltônico, dizem que sou louco, dizem que sou triste. Talvez seja verdade. Um pouco de tudo e de tudo um pouco: louco, triste, daltônico, só. Não sei.
Me lembro vagamente daquele dia que tanto insisto em esquecer, o último dia que ainda vi algo colorido. Chovia. Havia neblina. Fazia frio. Pelos paradoxos do destino, naquele dia a cor que mais se via era o preto. As pessoas estavam de luto, mas me lembro do verde vivo das árvores e do colorido esparso das coroas de flores. Eu tinha doze anos.
Lembro-me com rancor daquela noite em que íamos para Ubatuba. Tudo perfeito. Papai, mamãe, a Dani (minha irmã) e Pluto, nosso cachorro. Cantando canções do Chico, bebendo café na térmica antiga preparada com carinho pela mamãe, fazendo jogos mil de perguntas e respostas... Era divertido, todavia, não durou muito. É clara para mim a imagem da luz de freio daquele carro crescendo no pára-brisas de papai. O estrondo. O silêncio. As sirenes. Os gritos. Acordei e voltei a desmaiar numa fração de segundos; creio que foi uma defesa de meu eu. Acordei definitivamente no Hospital Municipal de Taubaté. Estava grogue, sedado, parecia meio bêbado. Não via papai, nem mamãe, nem Dani, nem Pluto. Algo me dizia que ele estava por perto e chorava comigo as lágrimas que ainda não tinha derramado. Aconteceu. Foi fatal. A colisão naquele Opala foi definitiva. Papai e mamãe morreram na hora e Dani, no caminho para o mesmo hospital para onde eu fora levado.
Eu não tinha mais família. Papai havia vindo de Porto Alegre quando sua mãe faleceu, já era casado e nunca ouvi falar dos pais de mamãe. Acho que eram de Santa Maria, uma cidade do interior gaúcho. Papai trabalhava por conta, vendia autopeças na Capital e no Vale do Paraíba, mamãe era dona de casa e tinha poucas amigas. Sei do esforço deles para nos dar aquelas férias. Iríamos conhecer o mar, eu aos doze anos, Dani aos nove. O mar. Dizem que o mar é azul, mas hoje, que diferença faz? Não sei mais ver cores. Mentira! Às vezes eu vejo vermelho, nos sonhos, pesadelos.
Depois de algumas horas entre o sono da sedação e o medo de ouvir o que acontecera, veio uma assistente social. Jovem, bonita, inesquecível. Ela tinha um sotaque caipira engraçado e uma meiguice que amansava o coração. Com um rosto plácido e solidário me disse o que houvera. Deu-me a notícia mais funesta de toda a minha vida. Eu virara órfão. Perdera meus pais, minha irmã e em breve perderia Pluto. Ela disse que depois dos funerais eu seria recolhido por um lar oficial, destes que cuidam de órfãos – um orfanato. Disse que havia muitos garotos legais lá e que lá também ensinavam a operar ferramentas e tornos mecânicos. Parecia bom, mas nada era bom naquele momento. Queria chorar, entretanto estava seca a minha retina. Eu virara homem e nem sabia. Queria brincar e sorrir. Não chorar. Queria meus bonecos de super-heróis, não tornos mecânicos. Queria o bolo de cenoura de mamãe. Queria os pelos macios de Pluto. Queria a minha cama. Queria acordar e perceber se tratar de um terrível pesadelo.
A entrevista durou, se é que me lembro, cerca de duas horas. Só a mulher falara. Sei que permaneci calado, seco, com o olhar fixo no fim do corredor, onde havia macas repletas de velhos moribundos e mulheres que deviam ter parido por aqueles instantes. O hospital fedia. Um cheiro forte de clorofôrmio circundava todos os ambientes. Era terrível. Terrível era saber que um dia após aquilo tudo, o Estado curaria a minha casa, eu iria para um orfanato cheio de freiras idiotas e voluntários hipócritas repletos de dó comprando lugares no céu. Terrível era saber que no outro dia, numa hora desconhecida ainda, eu acompanharia com os olhos o descer dos caixões numa cova provavelmente rasa de um cemitério público qualquer. Terrível era saber que eu dormiria sob a guarda de alguém que não era mamãe. Quem velaria meu sono? Quem cantaria para mim?
Mamãe cantava “João e Maria” para mim com aquele sotaque gaúcho desde que eu me entendia por gente. Dani gostava da canção da bailarina, que eu não sei o nome. Papai insistia com canções do Tim Maia. Não eram propícias para dormir, mas fingíamos que fazia efeito. Ele ficava feliz.
Passou mais de duas horas até que viessem me buscar. Finalmente chegou no hospital um cara do juizado de menores. Ele era um tanto quanto esquisito. Dava medo em crianças. Tinha um rosto delgado e sobrancelhas brancas enormes. A barba, por fazer, apontava ainda mais que já era velho: era rala e branca. Sua voz era soturna, parecia que estava numa rotação menor do que a normal. Ele era calmo, de dar sono, mas era carinhoso. Chamou-me no colo e explicou que eu não poderia levar Pluto para o orfanato, explicou-me que tinham descoberto uma campa em nome de papai num cemitério de São Paulo, Araçá eu acho, e que o Estado arcaria com as despesas do funeral. Avisou que alguns telefones constantes numa agenda encontrada no carro dilacerado e semi carbonizado haviam sido acionados e, que teriam pessoas no velório e no enterro para dar-me os pêsames. Nunca senti tanto desprezo por alguém! Eu acabara de perder a minha família e aquele velho cretino me dizia que “amigos” iriam consolar-me. Eu não falava palavrões, mas naquele momento pensei e quase disse um: fodam-se todos, eu quero meu pai. Mas eu não tinha sequer forças para chorar, quanto mais para agredir aquele sujeito boçal.
Fui em instantes levado para um hotel de viajantes, no centro de Caçapava. Quando tomamos a estrada, fiquei com medo, traumatizado, eu creio, e urinei nas calças. Chorei. Não podia ver as luzes das lanternas dos carros que dividiam o asfalto da Rodovia Pres. Dutra conosco. Lembrava da freada, do estampido, do escuro, do silêncio. Eu lembrava da morte que não me tinha acometido. Naquele instante lembrei-me pela primeira e última vez de Deus: Papai do Céu, porque me abandonaste (acho que o Menino Jesus quando estava para morrer na cruz também disse algo parecido). Ele não respondeu.
Chegamos no tal hotel. Era horroroso. No quarto não havia banheiro, mas por incrível que pareça, havia uma pia. Eram duas camas justapostas de fronte a uma TV preto e branco sem controle remoto. Sob os estrados, penicos. A janela dava para os fundos, não dava para ver a rua. Pensei em fugir. Mas para onde? Não tinha família, nem amigos – só os da escola, mas estávamos em férias e eu não saberia localizá-los. Resolvi aquietar e ficar lá, deitado, calado, acordado, amuado, dolorido e solitário. O homem do rosto delgado entrou, balbuciou palavras que me soaram desconexas, tirou os sapatos e de roupa mesmo deitou. Disse boa-noite, mas eu não respondi.
A manhã custou a chegar e quando veio, veio gélida, cinza e sem cor. O sol estava menos que tímido e fazia um vento assustador. O vento falava, mas eu não entendia. Tentava dizer-me algo – um recado de mamãe talvez – mas eu não entendia. Não entendia nada, sinais, palavras... nada. Um pouco depois das oito o velho levantou e, calado, foi à pia lavar o rosto. Eu não fizera o mesmo. Lavou-se pôs os sapatos e me pegou pelas mãos. Fomos a um salão com carpetes verdes escuros e mesas dispostas longitudinalmente. Havia pães num balcão, mamões, um suco aguado e um leite cheio de nata. O café tinha cheiro bom, e os frios tinha uma cara boa. Fiz um lanche. Desceu como um tijolo. Optei pelo café, com leite cheio de nata. Aquela bebida esquentara meu corpo. Mas, de fato, era minha alma que precisava de calor, e, este, não tinha de onde tirar.
Após o café o velho esquisito me guiou até seu carro, pôs-me no banco de trás e rumou para São Paulo numa vigem que demoraria ainda algo mais de uma hora. Quando chegamos em Guarulhos senti o frio de minha alma aumentar. Morávamos logo ali, naquelas cercanias. No Parque Novo Mundo, bem na entrada da cidade. Das marginais não dava para ver a minha casa, todavia eu a vi. A vi pintada, reformada, colorida e meus pais, Dani e Pluto estavam lá, numa varanda fruto de sonho que nunca existiu. O sonho de papai era construir uma varanda e pendurar uma rede nela. Isso jamais aconteceria.
Mais uma hora e estávamos no prédio da FEBEM, no bairro do Belém. Parecia um presídio. Senti medo. O homem adentrou e deixou-me no carro sob a promessa que não fugiria. Fiquei lá e esperei. Em minutos ele voltou cheio de papéis. Eu ainda naquele dia iria ter com as freiras do orfanato.
O velho deixou os papéis no banco do carona e foi até um orelhão saber se o traslado dos corpos já havia sido feito. Foi informado que os corpos estavam no IML da Teodoro Sampaio e que seriam liberados após o almoço. Começou a chover.
A chuva espessa e intermitente fez de São Paulo um caos. Na avenida Celso Garcia não se andava e pouco se podia ver pelo pára-brisas encharcado. Pela primeira vez eu dormi.
Quando acordei, percebi que o cinza do dia estava mais cinza. Não eram todas as cores que eu decifrava. Preocupei-me mas não me desesperei. Notei que estávamos estacionados ao lado de uma banca de flores, em frente a um cemitério e que o velho não estava no carro. Cerrei os olhos novamente e resolvi esperar. Em instantes ele voltou e me vestiu um casaco de lã e uma capa plástica, dessas bem baratinhas que papai comprava nos estádios de futebol. Desci.
Ao pisar o meio fio não senti as minhas pernas, vacilei e caí. O velho me ajudou, tomou-me pelas mãos e me conduziu a um portão do qual se podia ver uma capela de aspecto tênue, fraterno e angelical. Havia paz naquele lugar, mas em mim não havia alguma. Eu me corroía por dentro. Havia um grito preso na minha garganta, entretanto não haviam lágrimas em meus olhos cinzas. Mirei a capela e vi pessoas conhecidas. Um caixeiro amigo de papai, um casal de vizinhos, a mãe de Eduardo, meu colega de escola e de bola, Seu Alfredo, da padaria e mais alguns populares sem nome mas com rostos amenos e que me reportavam a uma vaga lembrança. Olhavam unânimes para mim com pena. Eu me olhava com pena. Lacrimejei, chorei. Discreto, mas chorei. Notei que as lágrimas se confundiam com os pingos grossos da chuva que apertara. Cheguei mais perto e vieram alguns, cheios de dó, cumprimentar-me. Mantive-me calado.
Cada minuto que passava, eu percebia as pessoas perguntando o que seria de mim, para onde eu iria, o que se faria da casa. Uma mulher gorda apostava com o marido que papai tinha um seguro de vida que me deixaria milionário. Uma outra de cabelos encaracolados e vestido florido dizia que eu era um “pestinha” e que o orfanato me faria bem. Um outro senhor, de quem me lembro, Seu Agostinho, um ex-patrão de papai me destinava olhares cálidos e franzia a testa como num tique nervoso. E eu, ao lado daquele velho macilento, não me via, não falava. Eu havia morrido com eles, mas só eu sabia disso.
O velório seguia e eu pedi então ao velho do juizado que me deixasse caminhar por entre as tumbas do Araçá. Tinha ido lá quando bem criança e me diverti muito localizando sobrenomes de políticos e de gente importante. Foi assim que consegui me distrair, conter meu choro e olhar para mim. Eu não era um coitado e não cabia minha autopiedade. Eu tinha só doze anos mas não era mais uma criança tola.
Os sinos começaram a tocar e a cada badalada meu coração esfriava mais. Parecia que eu tinha uma pedra de gelo em meu peito. Aquilo doía muito, era insuportável. Voltei à capela e pela primeira vez entrei nela. Vi os três caixões paralelos e notei que o de papai estava lacrado. Podia ver mamãe e Dani. Elas jaziam serenas e plácidas. Não sei porque, mas não tive medo. Pedi ao homem que me acolhera para acompanhar-me ao lado dos caixões. Beijei ambas as mãos, de Dani e de mamãe. Foi um adeus terrível.
O padre que lá chegou também me era conhecido, era Pe. Antunes da paróquia lá do bairro. Eu me perguntava, será que este homem idiota ligou para toda essa gente? Duvidei e lembrei que mamãe dizia que notícia ruim vinha à cavalo. Pela primeira vez entendi este ditado. A chuva apertou, e o cinza também. Todos vestiam preto e, mesmo chovendo, usavam óculos escuros. De cor, as folhagens: as abóbadas das árvores, as samambaias; e as flores: coroas com margaridas amarelas e outras que não sei o nome... o resto era sem cor.
Puseram os caixões num carrinho com rodas e alguns falastrões perfilaram-se ao lado, com as mãos nas alças fingindo que os carregavam: cena ridícula. O cortejo durou uns dez minutos e caminhamos cerca de 300 metros dentro do cemitério. Fomos da capela, na ala rica, a ala pobre, mais ao sul do estabelecimento. Finalmente chegamos à campa. Era simples, mas não simplória, tinha uma lápide de granito escuro e uma placa com nosso sobrenome, Martins. A pedra principal estava retirada e dentro do túmulo havia exatos três espaços. Isso me fez pensar o que seria de mim se eu tivesse morrido: não seria enterrado.
As pessoas choravam e eu mais ainda. O meu choro era calado, angustiado e só meu. O velho de rosto delgado, me fitando, chorou. A mulher gorda chorou, Seu Agostinho chorou. O céu... chorou.
Durante a cerimônia percebi o burburinho e devagar me afastei. A passos lentos alternados tomei a alameda da capela e, em segundos, a rua. Não tinha dinheiro, não tinha futuro, não tinha família, mas tinha coragem. Não queria o orfanato, nem os tornos mecânicos, nem freiras esclerosadas. Queria a vida que tinham roubado de mim, queria o horizonte, queria ver o sol, queria ver cores, queria ver vida. Fui-me embora. E vivi.
O que aconteceu nestes mais de quinze anos é assunto para um livro, e eu não tenho esta pretensão. Sei que sumi no mapa, dormi na rua, engraxei sapatos, pedi esmolas nos trens do subúrbio e de certa forma eu venci. Tenho vinte e sete anos e só não vejo cores, tenho uma mulher, filhos, um emprego. Não vejo cores mas tenho vida, sobrevivi. Tenho calos. Alguns nas mãos, outros na alma. Mas tenho alma.
Sei dizer, que enquanto escrevia este relato, olhei pela janela e não sei porquê, lembrei novamente de Deus, refiz a pergunta de outrora.
Vi um arco-íris. E ele estava colorido.
Rodrigo Augusto Fiedler
Bonito e triste; acho que essa era a idéia, não é, Rodrigão? Belo texto, parabéns, cara
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