O Pescador de Sonhos
Todas as tardes, enquanto enfrentava os congestionamentos mais cruéis das marginais, voltando para casa, eu me deparava com uma cena no mínimo bucólica: um homem velho, com um chapéu velho, roupas velhas e puídas com uma varinha de pescar nas mãos, destas feitas de bambu bem fino, acocorado como se estivesse pescando. Todos os dias, as dezessete e alguma coisa, eu via aquele pobre homem ali, a pescar, sabe-se o que.
A persistência do velho homem, claro, loucura, mexia muito comigo. Dava-me uma sensação estranha, e olha que eu odeio pescar. Não compreendia o porquê que aquele homem me incomodava tanto. Éramos milhares no trânsito e só para mim aquela cena marcava. Vira e mexe eu olhava para os outros motoristas, passageiros e ambulantes que vendem água, cerveja e pipocas adocicadas com cara de isopor. Ninguém notava aquele desgraçado. Aquele louco. Eu notava. Às vezes sentia uma vontade profunda de desligar o motor e ir ter com ele. Não indagá-lo sobre coisa alguma, mas pescar ao seu lado. Mas a minha vida não me permitia certos excessos, certas liberdades. Tinha hora para tudo. Para acordar, para tomar café, para entrar nas marginais, para bater cartão – e olha que eu não sou um funcionário do baixo escalão - para almoçar, para sair, para pegar as crianças na escola, para chegar, para beijar a minha mulher, para fazer amor com ela (afff... que amor?), para tudo... menos para pescar, para sorrir, para descansar e para sonhar. Eu tinha inveja daquele pobre coitado. De dentro do meu dezesseis válvulas, ar condicionado e bancos de couro, eu tinha inveja.
A rotina da minha vida parecia cada vez mais rotineira. Tudo se repetia com a mesma periodicidade. Tudo era sempre deveras igual. E essa unilateralidade da verdade da vida me cansava. Na verdade, aos quase cinqüenta anos, só tinha uma grande preocupação: o lucro, o estatus, o conforto e a segurança. Só de escola para os filhos eu desembolsava uma fortuna. De cabeleireiros para a fútil da Flávia, outra. Pudera... Como eu poderia estar casado com Flávia há tantos anos. Bom, eu talvez a merecesse e estes questionamentos fossem fruto de um estresse, afinal eu sempre disse que a amava, ela também. Não, eu não podia por tudo à prova por causa de um velho vagabundo que resolveu ir pescar no Rio Tietê todas as tardes.
Mas se ele fosse uma miragem? Nunca tinha ouvido falar dele. Os jornais sempre falam de pessoas estranhas, que fazem coisas estranhas. Imagine, pescar na marginal do Tietê, entre as pontes das Bandeiras e da Vila Guilherme, no horário de pico... teria dado no Datena, claro, teria dado. Mas não fora. E ele, maldito velho irresponsável, estava lá. Eu o podia ver, descrevê-lo para quem fosse. Tinha barbas hirsutas e brancas, seu chapéu era de palha, todo desfiado, a camisa, sempre a mesma – será que o desgraçado não tinha outra? – era rubra e a calça, puída, era de jeans, dobrada simetricamente até as panturrilhas. Estava sempre descalço. Ah, como eu me lembrava das antigas aulas de Programas de Saúde que tive no Grupo Escolar, onde a professorinha dizia para nunca irmos descalços à beira-rio por causa da leptospirose e das teníases. Certamente o velho tinha um plantel de anticorpos que o protegia, pois ele sempre estava descalço.
Não me lembrava da última vez que andei descalço sem ser nas areias limpas de Camburi. Vinte anos talvez. Eu nem era gerente ainda. Sabe, quando a gente vira gerente, a gente pára de andar descalço. Que estupidez eu estou pensando ! O que tem haver pés descalços com gerências administrativas? Talvez tudo, talvez nada. Talvez tudo e nada ao mesmo tempo. Pensei em voz alta: hoje vou desfilar descalço no jardim lá de casa. É, a minha casa tem um jardim e eu nunca pisei nele. Bom, loucura, Flávia iria me crucificar. Iria dizer que estou dando mal exemplo para Juliana e Enrico, que estou ensinando como se perde a classe. Pra puta que o pariu a classe. Eu vou andar descalço, eu vou... não vou.
Nossa, pensei um palavrão. À quanto não falo um... acho que quando o trânsito andar vou abrir o vidro e gritar um bem alto, pro mundo inteiro ouvir. O velho faria isso se pescasse um pneu, tenho certeza. Por que eu não posso gritar? Por que talvez eu ganhe mais de cinco mil reais e não fica bem para um gerente administrativo, de dentro de seu dezesseis válvulas, sair por aí gritando baixarias. Mas pensar é livre e eu penso... à puta que o pariu este trânsito, esta gente engessada sem sorrisos, a Flávia, os sapatos... Puxa ! Fiquei mais calmo só de pensar em palavrões.
Enquanto ria sozinho da minha própria loucura quase bati o carro. E o pior, no da frente. Eu estaria errado só por bater atrás e ainda, de uma perua Kombi muito velha e cheia de massa. Desviei. Deu tempo. O cara que estava no banco do carona abriu o vidro e me xingou: Filho da puta, ele disse; mas eu não disse. Eu era mudo. Calado. Na ponte do Tatuapé tomei à direita e logo estaria em casa. Moro no Anália Franco, num sobrado, cuja hipoteca, pago por mês. Mais dez minutos e cheguei.
Tudo igual novamente, passei no colégio, peguei os meninos, ouvi as mesmas ladainhas, animei-me até com elas, apontei na esquina, apertei o controle remoto, o portão se abriu, embiquei o sedam e vi Flávia, taciturna como sempre, de cabelos bem penteados e de mãos bem manicuradas. Flávia nunca se divertira na vida lavando uma louça e fazendo bolhas de sabão. Nunca se preocupara com afazeres domésticos. Nem criar os próprios filhos ela sabia. Dona Lêda, a babá que fora dela na infância, hoje bem envelhecia, a auxiliava na criação de seus rebentos.
Ela era bem mais jovem do que eu, preocupava-se com Shoppings, marcas e fofocas. Lia revistas que investigavam a vida dos famosos e sonhava em ser uma também. Às vezes lia romances fúteis da Norah Roberts e da Danielle Steel. Uma vez num outono qualquer, comprei um livro mais “cult” para que ela lesse no inverno e nada, leu nada, deu para sua mãe que, jamais saberei, não sei se leu.
Estacionei o carro, as crianças desceram e eu ainda fiquei ali, sentado, olhando para a grama do jardim com muita vontade de pisar nela. Não o fiz, claro. Finalmente saltei, tomei a porta da sala, dei um “oi” seco para ela, cumprimentei dona Lêda que estava bordando toalhas no sofá e subi para o pavimento superior. Entrei no banheiro e percorri com os olhos a fortuna gasta ali. Misturadores de aço inox, aquecedores centrais, azulejos porcelanados, louças super modernas. Para quê ? Havia um homem que certamente cagava e mijava em buracos, mas que podia pescar sabe-se o que no Rio Tietê todas as tardes enquanto eu não podia e esse homem cruzava o meu caminho, o meu destino, a minha vida, todos os dias.
Esquentei a água, tirei a roupa – cara, de marca, comprada adivinha por quem – joguei de qualquer jeito sem medo da retaliação iminente. Entrei no box e me banhei... Fiquei lá por mais de meia hora só sentindo a água, tão diferente da do rio, aquecer meu corpo, minha pele macilenta e cansada, pensei: puta que o pariu !!! Nossa, estava calmo, leve e louco para dormir. Não eram nem sete da noite.
Desci para jantar e o aparelho completo posto à mesa me irritou. Para quê aquilo tudo ? Dois pratos, talheres de prata, taças de cristal... aquele pescador de coisa alguma, com certeza, comia com as mãos. Milhares de outros brasileiros, de fato, comiam de qualquer jeito. Não era Flávia quem era fútil. Eu era fútil.
Comi a tal da carne ao molho de nome estrangeiro e senti pela primeira vez remorso. Quis vomitar. Saí da mesa num rompante e despedindo-me com acenos fui para o quarto. A infeliz me seguiu balbuciando palavras de censura. Pensei em mandá-la àquele lugar, mas não o fiz. O fato de pensar coisas novas e libertárias já me bastava. Desprezei com olhares serenos o falatório, deitei, virei para o lado e cerrei os olhos. Enfim, dormi.
Num tempo atemporal e inimaginável passei a sonhar. Nossa Senhora, à quanto eu não sonhava. Sonhei que descia do carro em plena marginal e ia a passos largos, correndo, encontrar-me com o velho, e ele tinha uma cesta repleta de peixes enormes e os chamava pelo nome. Os peixes tinham vida fora d’água e interagiam com o velho que, depois de pescá-los e conversar com eles num idioma estranho, os devolvia para água acenando um adeus cheio de glória.
Ainda no sonho, o velho virava para mim e dizia que a vida era exatamente como um rio, tinha curso, tinha margens, e a água que por lá passava nunca era a mesma. Dizia que o rio era o grande deus da novidade e da renovação e, quem não vivesse como os rios, estava fadado a vida morna, tediosa, engessada e infeliz. Acordei.
Eram três e meia da manhã e eu estava dormindo nu. Flávia odiava que eu dormisse nu – não era educado, de bom tom. Pulei da cama num só ensejo, pus um roupão, um chinelo e desci até a sala. Abri as cortinas e vi que a noite estava clara como dia e que a lua cheia parecia o sol. Peguei as chaves do meu carro, o controle do portão e discretamente saí. Fui até a marginal do Tietê, lá onde ficava o velho.
Estacionei num espaço de encosta, quinhentos metros depois, atravessei correndo e tomei as margens. Tirei os chinelos e na verdade os perdi por ali. Caminhei descalço sobre o cascalho e a terra da orla. Fui até onde o velho pescava, olhei para as águas fétidas e de repente deixei de sentir o fedor. Olhei para o fundo das águas e vi carpas vermelhas brincando comigo. Sorri. Humanamente sorri.
Voltei para casa e a ao chegar a vi toda acesa. Flávia estava em polvorosa com a minha escapada. Falou de amantes e telefonemas e eu, falei de carpas, pescadores e sonhos. Não nos entendemos, para variar.
No manhã seguinte, as seis em ponto, tocou o relógio. Flávia acordou e me chacoalhou. Em vão. Decidi enquanto caminhava à beira-rio que naquela quarta-feira eu não iria trabalhar. Proibi as crianças de irem a escola e as oito, quando levantamos definitivamente, fui com elas ao quintal: descalços. Liguei a mangueira numa torneira qualquer e mesmo sem estar um grande calor, fiz com que o esguicho parecesse com uma chuva. Rimos todos, rimos muito, rimos tudo. Flávia, sempre amuada bastou-se em queixar-se com Dona Lêda.
Na hora do almoço fizemos hambúrgueres para a decepção de minha mulher, tomamos refrigerante e depois comemos sorvetes... Naquele dia, tudo estava permitido. Comer era permitido, brincar de roda, de pião, de bolinhas de gude era permitido, andar descalço era permitido, falar palavrões era permitido, sorrir era permitido, por o dedo no nariz era permitido, fazer “pum” era permitido. Só cara feia e olhar para relógios é que não era permitido. Afrontada, Flávia saiu. Foi ao Shopping, ou para o inferno. Dane-se.
O dia que era para ser o mais duradouro de minha vida foi efêmero. Passou voando e logo anoiteceu. Flávia não voltou e as crianças nem reclamaram: estávamos esgotados. Deitamos todos na minha cama de casal e dormimos cedo. A folia não poderia continuar na quinta-feira. Responsabilidades existiam e todos nós sabíamos disso.
A noite passou mais rápido do que o dia e não tenho certeza, sonhei novamente. Sonhei que pescava fotos da infância num lago dourado, ao lado de um velho plácido de sorriso tênue, de fisionomia serena. Não parecia sonho, mas eu nunca estivera naquele lugar. Era surreal, era imaginário, era sonho com certeza.
O relógio, que via de regra tocava às seis não tocou, mas eu acordei. Vi Flávia dormindo no quarto ao lado e não a chamei. Cobri os meninos que ainda dormiriam mais meia hora, fui para o banho, me barbeei e saí.
Enfrentei o trânsito da manhã, vi o nascer do sol, me encantei com as crianças de rua e seus malabares, dei moedas e distribuí sorrisos. Guiei com os vidros abertos em plena São Paulo e ninguém me roubou. Trabalhei o dia inteiro sem os pés nos sapatos, pensei palavrões, abri sites de piadas durante o expediente, soltei “puns” sem ir ao banheiro e tomei uma decisão. Iria parar o carro caso o pescador estivesse lá e daria para ele um cheque, para que fizesse ao menos uma compra. Comida talvez. Deu cinco horas.
Saí do escritório na região de Santana e cinco e dez já estava nas imediações da marginal. Mais algumas centenas de metros e eu estaria no meu destino. Quando desci a ponte e ingressei na avenida, tive um susto. Não havia trânsito, não haviam carros, nem ambulantes. Havia apenas um sol manso de luminosidade tranqüila e uma brisa com cheiro de campo. Percorri mais meio quilômetro e avistei o velho. Estacionei na esquerda mesmo e desci. Descalcei-me e fui ao seu encontro. Ele tinha, de fato, uma cesta – de vime, cheia de fotos pescadas no rio.
Deu-me as fotografias em silêncio, a vara, um anzol e sorriu. Caminhou até as águas e lentamente foi submergindo, bem lentamente, fazendo um aceno. Seu rosto plácido transmitia paz. Cruzei as pernas e sentei-me sobre elas. Vi as fotos com atenção. Olhei para trás e vi jardins. A marginal não estava mais lá. Vi fotos do casamento de Enrico, das bodas de quinze anos de Juliana. Vi fotos da Flávia em preto e branco. Vi fotos minhas bem velhinho. Montei um álbum sobre a terra, olhei pro rio e entendi a vida. Levantei-me e fui até ele. Pisei nas suas águas e virei água. Fluí com o rio, pesquei sonhos com a isca da vida e entendi a vida. Fluí, fluí... e nunca mais voltei.
Todas as tardes, enquanto enfrentava os congestionamentos mais cruéis das marginais, voltando para casa, eu me deparava com uma cena no mínimo bucólica: um homem velho, com um chapéu velho, roupas velhas e puídas com uma varinha de pescar nas mãos, destas feitas de bambu bem fino, acocorado como se estivesse pescando. Todos os dias, as dezessete e alguma coisa, eu via aquele pobre homem ali, a pescar, sabe-se o que.
A persistência do velho homem, claro, loucura, mexia muito comigo. Dava-me uma sensação estranha, e olha que eu odeio pescar. Não compreendia o porquê que aquele homem me incomodava tanto. Éramos milhares no trânsito e só para mim aquela cena marcava. Vira e mexe eu olhava para os outros motoristas, passageiros e ambulantes que vendem água, cerveja e pipocas adocicadas com cara de isopor. Ninguém notava aquele desgraçado. Aquele louco. Eu notava. Às vezes sentia uma vontade profunda de desligar o motor e ir ter com ele. Não indagá-lo sobre coisa alguma, mas pescar ao seu lado. Mas a minha vida não me permitia certos excessos, certas liberdades. Tinha hora para tudo. Para acordar, para tomar café, para entrar nas marginais, para bater cartão – e olha que eu não sou um funcionário do baixo escalão - para almoçar, para sair, para pegar as crianças na escola, para chegar, para beijar a minha mulher, para fazer amor com ela (afff... que amor?), para tudo... menos para pescar, para sorrir, para descansar e para sonhar. Eu tinha inveja daquele pobre coitado. De dentro do meu dezesseis válvulas, ar condicionado e bancos de couro, eu tinha inveja.
A rotina da minha vida parecia cada vez mais rotineira. Tudo se repetia com a mesma periodicidade. Tudo era sempre deveras igual. E essa unilateralidade da verdade da vida me cansava. Na verdade, aos quase cinqüenta anos, só tinha uma grande preocupação: o lucro, o estatus, o conforto e a segurança. Só de escola para os filhos eu desembolsava uma fortuna. De cabeleireiros para a fútil da Flávia, outra. Pudera... Como eu poderia estar casado com Flávia há tantos anos. Bom, eu talvez a merecesse e estes questionamentos fossem fruto de um estresse, afinal eu sempre disse que a amava, ela também. Não, eu não podia por tudo à prova por causa de um velho vagabundo que resolveu ir pescar no Rio Tietê todas as tardes.
Mas se ele fosse uma miragem? Nunca tinha ouvido falar dele. Os jornais sempre falam de pessoas estranhas, que fazem coisas estranhas. Imagine, pescar na marginal do Tietê, entre as pontes das Bandeiras e da Vila Guilherme, no horário de pico... teria dado no Datena, claro, teria dado. Mas não fora. E ele, maldito velho irresponsável, estava lá. Eu o podia ver, descrevê-lo para quem fosse. Tinha barbas hirsutas e brancas, seu chapéu era de palha, todo desfiado, a camisa, sempre a mesma – será que o desgraçado não tinha outra? – era rubra e a calça, puída, era de jeans, dobrada simetricamente até as panturrilhas. Estava sempre descalço. Ah, como eu me lembrava das antigas aulas de Programas de Saúde que tive no Grupo Escolar, onde a professorinha dizia para nunca irmos descalços à beira-rio por causa da leptospirose e das teníases. Certamente o velho tinha um plantel de anticorpos que o protegia, pois ele sempre estava descalço.
Não me lembrava da última vez que andei descalço sem ser nas areias limpas de Camburi. Vinte anos talvez. Eu nem era gerente ainda. Sabe, quando a gente vira gerente, a gente pára de andar descalço. Que estupidez eu estou pensando ! O que tem haver pés descalços com gerências administrativas? Talvez tudo, talvez nada. Talvez tudo e nada ao mesmo tempo. Pensei em voz alta: hoje vou desfilar descalço no jardim lá de casa. É, a minha casa tem um jardim e eu nunca pisei nele. Bom, loucura, Flávia iria me crucificar. Iria dizer que estou dando mal exemplo para Juliana e Enrico, que estou ensinando como se perde a classe. Pra puta que o pariu a classe. Eu vou andar descalço, eu vou... não vou.
Nossa, pensei um palavrão. À quanto não falo um... acho que quando o trânsito andar vou abrir o vidro e gritar um bem alto, pro mundo inteiro ouvir. O velho faria isso se pescasse um pneu, tenho certeza. Por que eu não posso gritar? Por que talvez eu ganhe mais de cinco mil reais e não fica bem para um gerente administrativo, de dentro de seu dezesseis válvulas, sair por aí gritando baixarias. Mas pensar é livre e eu penso... à puta que o pariu este trânsito, esta gente engessada sem sorrisos, a Flávia, os sapatos... Puxa ! Fiquei mais calmo só de pensar em palavrões.
Enquanto ria sozinho da minha própria loucura quase bati o carro. E o pior, no da frente. Eu estaria errado só por bater atrás e ainda, de uma perua Kombi muito velha e cheia de massa. Desviei. Deu tempo. O cara que estava no banco do carona abriu o vidro e me xingou: Filho da puta, ele disse; mas eu não disse. Eu era mudo. Calado. Na ponte do Tatuapé tomei à direita e logo estaria em casa. Moro no Anália Franco, num sobrado, cuja hipoteca, pago por mês. Mais dez minutos e cheguei.
Tudo igual novamente, passei no colégio, peguei os meninos, ouvi as mesmas ladainhas, animei-me até com elas, apontei na esquina, apertei o controle remoto, o portão se abriu, embiquei o sedam e vi Flávia, taciturna como sempre, de cabelos bem penteados e de mãos bem manicuradas. Flávia nunca se divertira na vida lavando uma louça e fazendo bolhas de sabão. Nunca se preocupara com afazeres domésticos. Nem criar os próprios filhos ela sabia. Dona Lêda, a babá que fora dela na infância, hoje bem envelhecia, a auxiliava na criação de seus rebentos.
Ela era bem mais jovem do que eu, preocupava-se com Shoppings, marcas e fofocas. Lia revistas que investigavam a vida dos famosos e sonhava em ser uma também. Às vezes lia romances fúteis da Norah Roberts e da Danielle Steel. Uma vez num outono qualquer, comprei um livro mais “cult” para que ela lesse no inverno e nada, leu nada, deu para sua mãe que, jamais saberei, não sei se leu.
Estacionei o carro, as crianças desceram e eu ainda fiquei ali, sentado, olhando para a grama do jardim com muita vontade de pisar nela. Não o fiz, claro. Finalmente saltei, tomei a porta da sala, dei um “oi” seco para ela, cumprimentei dona Lêda que estava bordando toalhas no sofá e subi para o pavimento superior. Entrei no banheiro e percorri com os olhos a fortuna gasta ali. Misturadores de aço inox, aquecedores centrais, azulejos porcelanados, louças super modernas. Para quê ? Havia um homem que certamente cagava e mijava em buracos, mas que podia pescar sabe-se o que no Rio Tietê todas as tardes enquanto eu não podia e esse homem cruzava o meu caminho, o meu destino, a minha vida, todos os dias.
Esquentei a água, tirei a roupa – cara, de marca, comprada adivinha por quem – joguei de qualquer jeito sem medo da retaliação iminente. Entrei no box e me banhei... Fiquei lá por mais de meia hora só sentindo a água, tão diferente da do rio, aquecer meu corpo, minha pele macilenta e cansada, pensei: puta que o pariu !!! Nossa, estava calmo, leve e louco para dormir. Não eram nem sete da noite.
Desci para jantar e o aparelho completo posto à mesa me irritou. Para quê aquilo tudo ? Dois pratos, talheres de prata, taças de cristal... aquele pescador de coisa alguma, com certeza, comia com as mãos. Milhares de outros brasileiros, de fato, comiam de qualquer jeito. Não era Flávia quem era fútil. Eu era fútil.
Comi a tal da carne ao molho de nome estrangeiro e senti pela primeira vez remorso. Quis vomitar. Saí da mesa num rompante e despedindo-me com acenos fui para o quarto. A infeliz me seguiu balbuciando palavras de censura. Pensei em mandá-la àquele lugar, mas não o fiz. O fato de pensar coisas novas e libertárias já me bastava. Desprezei com olhares serenos o falatório, deitei, virei para o lado e cerrei os olhos. Enfim, dormi.
Num tempo atemporal e inimaginável passei a sonhar. Nossa Senhora, à quanto eu não sonhava. Sonhei que descia do carro em plena marginal e ia a passos largos, correndo, encontrar-me com o velho, e ele tinha uma cesta repleta de peixes enormes e os chamava pelo nome. Os peixes tinham vida fora d’água e interagiam com o velho que, depois de pescá-los e conversar com eles num idioma estranho, os devolvia para água acenando um adeus cheio de glória.
Ainda no sonho, o velho virava para mim e dizia que a vida era exatamente como um rio, tinha curso, tinha margens, e a água que por lá passava nunca era a mesma. Dizia que o rio era o grande deus da novidade e da renovação e, quem não vivesse como os rios, estava fadado a vida morna, tediosa, engessada e infeliz. Acordei.
Eram três e meia da manhã e eu estava dormindo nu. Flávia odiava que eu dormisse nu – não era educado, de bom tom. Pulei da cama num só ensejo, pus um roupão, um chinelo e desci até a sala. Abri as cortinas e vi que a noite estava clara como dia e que a lua cheia parecia o sol. Peguei as chaves do meu carro, o controle do portão e discretamente saí. Fui até a marginal do Tietê, lá onde ficava o velho.
Estacionei num espaço de encosta, quinhentos metros depois, atravessei correndo e tomei as margens. Tirei os chinelos e na verdade os perdi por ali. Caminhei descalço sobre o cascalho e a terra da orla. Fui até onde o velho pescava, olhei para as águas fétidas e de repente deixei de sentir o fedor. Olhei para o fundo das águas e vi carpas vermelhas brincando comigo. Sorri. Humanamente sorri.
Voltei para casa e a ao chegar a vi toda acesa. Flávia estava em polvorosa com a minha escapada. Falou de amantes e telefonemas e eu, falei de carpas, pescadores e sonhos. Não nos entendemos, para variar.
No manhã seguinte, as seis em ponto, tocou o relógio. Flávia acordou e me chacoalhou. Em vão. Decidi enquanto caminhava à beira-rio que naquela quarta-feira eu não iria trabalhar. Proibi as crianças de irem a escola e as oito, quando levantamos definitivamente, fui com elas ao quintal: descalços. Liguei a mangueira numa torneira qualquer e mesmo sem estar um grande calor, fiz com que o esguicho parecesse com uma chuva. Rimos todos, rimos muito, rimos tudo. Flávia, sempre amuada bastou-se em queixar-se com Dona Lêda.
Na hora do almoço fizemos hambúrgueres para a decepção de minha mulher, tomamos refrigerante e depois comemos sorvetes... Naquele dia, tudo estava permitido. Comer era permitido, brincar de roda, de pião, de bolinhas de gude era permitido, andar descalço era permitido, falar palavrões era permitido, sorrir era permitido, por o dedo no nariz era permitido, fazer “pum” era permitido. Só cara feia e olhar para relógios é que não era permitido. Afrontada, Flávia saiu. Foi ao Shopping, ou para o inferno. Dane-se.
O dia que era para ser o mais duradouro de minha vida foi efêmero. Passou voando e logo anoiteceu. Flávia não voltou e as crianças nem reclamaram: estávamos esgotados. Deitamos todos na minha cama de casal e dormimos cedo. A folia não poderia continuar na quinta-feira. Responsabilidades existiam e todos nós sabíamos disso.
A noite passou mais rápido do que o dia e não tenho certeza, sonhei novamente. Sonhei que pescava fotos da infância num lago dourado, ao lado de um velho plácido de sorriso tênue, de fisionomia serena. Não parecia sonho, mas eu nunca estivera naquele lugar. Era surreal, era imaginário, era sonho com certeza.
O relógio, que via de regra tocava às seis não tocou, mas eu acordei. Vi Flávia dormindo no quarto ao lado e não a chamei. Cobri os meninos que ainda dormiriam mais meia hora, fui para o banho, me barbeei e saí.
Enfrentei o trânsito da manhã, vi o nascer do sol, me encantei com as crianças de rua e seus malabares, dei moedas e distribuí sorrisos. Guiei com os vidros abertos em plena São Paulo e ninguém me roubou. Trabalhei o dia inteiro sem os pés nos sapatos, pensei palavrões, abri sites de piadas durante o expediente, soltei “puns” sem ir ao banheiro e tomei uma decisão. Iria parar o carro caso o pescador estivesse lá e daria para ele um cheque, para que fizesse ao menos uma compra. Comida talvez. Deu cinco horas.
Saí do escritório na região de Santana e cinco e dez já estava nas imediações da marginal. Mais algumas centenas de metros e eu estaria no meu destino. Quando desci a ponte e ingressei na avenida, tive um susto. Não havia trânsito, não haviam carros, nem ambulantes. Havia apenas um sol manso de luminosidade tranqüila e uma brisa com cheiro de campo. Percorri mais meio quilômetro e avistei o velho. Estacionei na esquerda mesmo e desci. Descalcei-me e fui ao seu encontro. Ele tinha, de fato, uma cesta – de vime, cheia de fotos pescadas no rio.
Deu-me as fotografias em silêncio, a vara, um anzol e sorriu. Caminhou até as águas e lentamente foi submergindo, bem lentamente, fazendo um aceno. Seu rosto plácido transmitia paz. Cruzei as pernas e sentei-me sobre elas. Vi as fotos com atenção. Olhei para trás e vi jardins. A marginal não estava mais lá. Vi fotos do casamento de Enrico, das bodas de quinze anos de Juliana. Vi fotos da Flávia em preto e branco. Vi fotos minhas bem velhinho. Montei um álbum sobre a terra, olhei pro rio e entendi a vida. Levantei-me e fui até ele. Pisei nas suas águas e virei água. Fluí com o rio, pesquei sonhos com a isca da vida e entendi a vida. Fluí, fluí... e nunca mais voltei.
Rodrigo Augusto Fiedler
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