O Telefone ( Conto do Cotidiano )
Sempre às sete, talvez sete e cinco tocava o telefone. Era público, orelhão. Aquilo me chamava a atenção, me perturbava. Eu era só no ponto de ônibus. Não podia ser para mim, não era para mim, ele apenas tocava.
O coletivo passava pontual às sete e sete. Dois minutos diários a ouvir os insistentes toques sem destino do telefone. Subia no veículo e quase que por uma coincidência que beirava o sinistro, os toques se calavam. Havia então a troca daquele insistente chamado pelo barulho do motor, que rangia, que agredia, que insultava a minha fadiga matutina e a minha preguiça de primeira hora. Eu ia em pé apoiado num suporte de ferro e encostado num banco ocupado sempre pela mesma velha senhora que dormia um sono pesado que me irritava. E o telefone ? Por que tocava ? E o ônibus, por que também era sempre igual ?
As roupas dos passageiros pareciam sempre pares, iguais, uniformes talvez; o motorista era o mesmo, o cobrador o mesmo, embora às vezes fosse substituído por um rapaz de bigodes ralos, o itinerário era o mesmo, os horários os mesmos. Isso tudo era parte do rotineiro cotidiano desperto pelo toque insistente do telefone.
Dois pontos depois subia no carro um senhor fanfarrão, sei seu nome, mas não lembro. Ele cumprimentava a todos e parecia ser simpático. Falso ! Eu pensava. Como podia um homem de meia idade, marmita na mão, roupas puídas, cabelos sempre ensebados e cheiro forte de cama poder ter sempre um sorriso amarelo no rosto enrugado e velho para dar aos outros ? Falso! Repetia para meu eu.
Uns vinte minutos após a partida de meu ponto, aquele ao lado do telefone persistente, subia no coletivo uma moça morena, de quadris largos, beiço farto e seios empinados. Todos os dias: sete e meia ela entrava e talvez não ficasse no ônibus por mais de dez minutos. Ela ria e trocava gracejos com o condutor que a permitia descer pela frente, sem pagar. Não sei o que irritava mais: ela descer pela frente, suas curvas exageradas que não me pertenciam ou o perfume quase barato que apagava o cheiro frustrante de óleo diesel da manhã e inspirava sensações quase eróticas e coloridas para dias de início tão cinza. Acho que as curvas, sim as curvas.
No penúltimo banco sentava um rapaz que devia ser contínuo ou mensageiro de alguma grande empresa. Vinha sempre com a mesma roupa, idêntica. Calça cinza com pregas, camisa de manga curta (estivesse o frio que fosse) e uma gravata vermelha de nó malfeito. Ouvia através de fones de ouvido algo que à distância parecia ser um destes sambas de má qualidade. Combinava bem com as espinhas púberes, pêlos esparsos e unhas roídas. Ele também viajava de olhos fechados, mas como eu, não dormia.
Os toques do telefone apagavam sistematicamente de meu raio de visão estas imagens cheias de rotina. Eu sei que até tinha manhãs cheias de peculiaridades que iam do esdrúxulo ao desprezível, do excitante ao curioso, do invejável ao comiserado: podia ser interessante. Podia ser engraçado. Mas os toques do famigerado orelhão me hipnotizavam, me cortavam a retina, era o som que me fazia cego. Quem poderia ligar sempre para o mesmo número, na mesma hora, todos os dias... Puta que pariu ! Nem sequer há no ponto, dia qualquer, alguém além de mim. Mas eu não conhecia ninguém, morava sozinho, não tinha amigos, quem me ligaria? Quem? Não era para mim. Ao menos, não podia ser.
Passavam os dias e a rotina do ônibus que me levava ao solitário trabalho de vigia numa rua de classe média, num bairro de classe média e casas quase elegantes se repetia. O telefone se repetia. As pessoas se repetiam, o velho, a morena, a senhora e o garoto. As manhãs cinzas sem sol se repetiam. O telefone se repetia em minha mente. Puta paranóia! Pensei: preciso de férias, de descanso preciso de cor, de alma e de dia. Mas e o telefone ? Haveria de continuar tocando?
Eu morava num corredor, um cortiço destes modernos, casas de aluguel baratas onde os lençóis dos vizinhos se faziam cortinas externas, onde o cheiro forte de coentro na comida na hora da janta me lembrava algo de um nordeste de onde não vim. Crianças sujas, descalças e cheias de ranho no rosto corriam e infernizavam os últimos minutos vespertinos. Minha moradia consistia num cômodo e cozinha, bem ajambrado até. Tinha TV, um rádio elétrico, uma cama de casal que nunca fora usada para tal, um criado mudo, de fato mudo mas repleto de livros que eu comprava vez em quando num sebo da Praça João Mendes, ali pertinho. Tinha uma geladeira de segunda mão, um fogão de duas bocas das quais só uma funcionava – usava para fazer café; um armário de ferro na cozinha e um guarda roupas “marabraz” onde guardava o meu uniforme, minha arma, meus sapatos, desodorantes, roupas de domingo e às vezes a minha alma.
O corredor era dividido por mim e três famílias. Eu não conhecia ninguém. Não. Conhecia sim! Joãozinho, um daqueles moleques ranhentos já havia se apresentado uma vez. Veio pedir água, não lembro.
Esta era a minha vida: um cortiço nojento, um ônibus cheio de rotas e rotinas, uma guarita de ferro, patrões sem bom dia, noites sem sono, manhãs sem sol e um telefone alucinado com hora marcada.
Já estava em casa. Dezoito e quarenta e cinco. Já era noite. Passei lá para guardar a arma, soltar a gravata azul, pegar uns trocados e, para variar, enjoar com o cheiro forte de tempero do norte. Naquele dia igual, tudo havia sido igual, a mesma rua, o mesmo ônibus, os mesmo colegas de viagem, e claro, o telefone. Pensei, vou ao bar, beber umas e outras, potencializar o cansaço desta vida que tanto cansa e dormir, afinal amanhã ainda seria Sexta e eu tinha de ir trabalhar.
Eram mais de dez horas quando tomei o último trago. Estava visivelmente bêbado. Havia misturado vermute, conhaque, cervejas... nem sei. Cheguei em casa embriagado, acendi um cigarro na boca do fogão e queimei os cílios, mas nem liguei. Deitei sem banho e só de cuecas. Dormi em instantes. Pesado. Como nunca dormira antes. Um sono ruim, cheio de medo... o telefone tocou a noite inteira. Sonho? Pesadelo? Realidade? Gritei ! Acordei suando, corri para o banheiro que ficava fora, entrei no chuveiro e nem percebi que fazia Sol. A água era morna e agradava minha pele. Fiz a barba, senti o cheiro da espuma, do sabonete, do xampu. Era uma manhã diferente. Olhei no relógio de pulso que nem sei se era à prova d’água, apontava seis e meia, enrolei-me na toalha, espiei pela fresta da porta, corri para minha casa e no quarto, liguei o rádio. Tocava uma música tênue, Roberto, eu acho. Troquei-me com gosto e até me perfumei. Nem lembrava do paranóico telefone perseguidor de todas as manhãs. Saí. Eram seis e cinqüenta e cinco.
Caminhava tranqüilo pelo passeio indo ao encontro do ponto de ônibus. Tudo mudara, as pessoas surgiam nas janelas e davam bom dia, pássaros cantavam sonoramente, o céu estava claro – azul celeste e o Sol despontava do leste horizonte. Mirei meu destino e vi o ponto vazio e o telefone mudo. Mudo... pela primeira vez mudo, silencioso, calmo. Aquilo me deixou mais calmo.
Às sete em ponto encostei na parada do coletivo, notei que não passavam muitos carros na rua e que cada vez, muito rápido, o dia ficava mais claro. Tocou o telefone! Senti algo diferente naquela manhã. Não foi angustiante ouvi-lo. Pela primeira vez resolvi atender. Caminhei rumo ao orelhão e vi meu ônibus, fiquei em dúvida, voltei um passo mas não desisti. Atendi com um sonoro alô!
_ Geraldo ?
_ Sim, sou eu. Respondi.
_ Demoraste para atender meu chamado !
_ Quem fala, o que quer, como me conhece? Indaguei cheio de fúria.
_ Acalme-se e me ouça, Ok?
Era uma voz masculina tranqüila e suave, passava paz e eu, de fato, perdera o medo. Concordei em ouvir sem sequer responder, então, a voz macia continuou:
... Cont.
_ Geraldo querido, não tome teu ônibus e não vá trabalhar. Sente-se calmamente no meio fio e aguarde o próximo ônibus que virá sem placa de destino. Entre nele e relaxe, vc entenderá.
Ouvi a recomendação estranhando deveras, mas nem pensei em não acatar. Aguardei mais alguma palavra mas a linha caiu, sobrou para mim o típico “Tu Tu Tu” das linhas ocupadas.
Fui frente ao ponto e sentei no meio fio. Doutro lado da rua num out-door, havia uma frase: Hoje é o dia mais importante da sua vida !!! Era um anúncio de Seguros que jamais tinha visto. Na esquina, pichações grafitadas reproduziam frases de Luther King, John Lennon e Nelson Mandela, era o muro de uma escola, a qual nunca tinha notado. Vi revoadas de pardais, sabiás que cantavam em árvores e percebi no horizonte o espectro de um arco-íris. Nunca vira nada daquilo. Como?
O tal ônibus sem placa de destino apontara na rua. Pela primeira vez naquela manhã fiquei angustiado. Senti uma dor no meu peito que logo passou. Não precisei dar sinal. Ele parou.
Era um ônibus novo, bonito e confortável. Tinha bancos macios e música ambiente; o motorista era um homem gordo, vermelho, educado e sorridente. Vestia branco, um terno branco. Não havia cobrador, nem passageiros, nem cheiro de óleo diesel. Era estranho, mas confortável, confiável. Eu estava bem ali.
Sentei-me num banco bem no meio do carro, senti sono e acabei dormindo. Minutos ou horas depois, acordei com uma freada e um barulho semelhante a um burburinho de pessoas falando. Vozes infantis, femininas e maduras. Não as reconhecia, mas também não as estranhava. Levantei, caminhei para a porta e agradeci ao motorista, desci e sorrindo recebi Joãozinho que me trazia um pedaço de bolo. Ele estava limpo e bem vestido. Caminhando por entre as pessoas que estavam ali me aguardando no ponto final, reconheci o velho da marmita e cabelos ensebados, a morena de curvas salientes, o contínuo e seus fones de ouvido, o cobrador, a velha senhora. Os moradores da rua em que eu trabalhava também estavam lá, sorriam e falavam de mim, mas eu não conseguia falar com eles. Havia uma capela, um repórter e câmeras de televisão. Aproximei-me mas não me podiam ver. Vi um senhor conhecido, parceiro de copo, parceiro de bar com um jornal na mão. Por trás de seus ombros tentei a manchete, li e tudo apagou. A última coisa que me lembro ter lido foi:
“Vigia morre assassinado por grupos de extermínio num orelhão da Zona Sul. Nem pôde se defender”.
Sempre às sete, talvez sete e cinco tocava o telefone. Era público, orelhão. Aquilo me chamava a atenção, me perturbava. Eu era só no ponto de ônibus. Não podia ser para mim, não era para mim, ele apenas tocava.
O coletivo passava pontual às sete e sete. Dois minutos diários a ouvir os insistentes toques sem destino do telefone. Subia no veículo e quase que por uma coincidência que beirava o sinistro, os toques se calavam. Havia então a troca daquele insistente chamado pelo barulho do motor, que rangia, que agredia, que insultava a minha fadiga matutina e a minha preguiça de primeira hora. Eu ia em pé apoiado num suporte de ferro e encostado num banco ocupado sempre pela mesma velha senhora que dormia um sono pesado que me irritava. E o telefone ? Por que tocava ? E o ônibus, por que também era sempre igual ?
As roupas dos passageiros pareciam sempre pares, iguais, uniformes talvez; o motorista era o mesmo, o cobrador o mesmo, embora às vezes fosse substituído por um rapaz de bigodes ralos, o itinerário era o mesmo, os horários os mesmos. Isso tudo era parte do rotineiro cotidiano desperto pelo toque insistente do telefone.
Dois pontos depois subia no carro um senhor fanfarrão, sei seu nome, mas não lembro. Ele cumprimentava a todos e parecia ser simpático. Falso ! Eu pensava. Como podia um homem de meia idade, marmita na mão, roupas puídas, cabelos sempre ensebados e cheiro forte de cama poder ter sempre um sorriso amarelo no rosto enrugado e velho para dar aos outros ? Falso! Repetia para meu eu.
Uns vinte minutos após a partida de meu ponto, aquele ao lado do telefone persistente, subia no coletivo uma moça morena, de quadris largos, beiço farto e seios empinados. Todos os dias: sete e meia ela entrava e talvez não ficasse no ônibus por mais de dez minutos. Ela ria e trocava gracejos com o condutor que a permitia descer pela frente, sem pagar. Não sei o que irritava mais: ela descer pela frente, suas curvas exageradas que não me pertenciam ou o perfume quase barato que apagava o cheiro frustrante de óleo diesel da manhã e inspirava sensações quase eróticas e coloridas para dias de início tão cinza. Acho que as curvas, sim as curvas.
No penúltimo banco sentava um rapaz que devia ser contínuo ou mensageiro de alguma grande empresa. Vinha sempre com a mesma roupa, idêntica. Calça cinza com pregas, camisa de manga curta (estivesse o frio que fosse) e uma gravata vermelha de nó malfeito. Ouvia através de fones de ouvido algo que à distância parecia ser um destes sambas de má qualidade. Combinava bem com as espinhas púberes, pêlos esparsos e unhas roídas. Ele também viajava de olhos fechados, mas como eu, não dormia.
Os toques do telefone apagavam sistematicamente de meu raio de visão estas imagens cheias de rotina. Eu sei que até tinha manhãs cheias de peculiaridades que iam do esdrúxulo ao desprezível, do excitante ao curioso, do invejável ao comiserado: podia ser interessante. Podia ser engraçado. Mas os toques do famigerado orelhão me hipnotizavam, me cortavam a retina, era o som que me fazia cego. Quem poderia ligar sempre para o mesmo número, na mesma hora, todos os dias... Puta que pariu ! Nem sequer há no ponto, dia qualquer, alguém além de mim. Mas eu não conhecia ninguém, morava sozinho, não tinha amigos, quem me ligaria? Quem? Não era para mim. Ao menos, não podia ser.
Passavam os dias e a rotina do ônibus que me levava ao solitário trabalho de vigia numa rua de classe média, num bairro de classe média e casas quase elegantes se repetia. O telefone se repetia. As pessoas se repetiam, o velho, a morena, a senhora e o garoto. As manhãs cinzas sem sol se repetiam. O telefone se repetia em minha mente. Puta paranóia! Pensei: preciso de férias, de descanso preciso de cor, de alma e de dia. Mas e o telefone ? Haveria de continuar tocando?
Eu morava num corredor, um cortiço destes modernos, casas de aluguel baratas onde os lençóis dos vizinhos se faziam cortinas externas, onde o cheiro forte de coentro na comida na hora da janta me lembrava algo de um nordeste de onde não vim. Crianças sujas, descalças e cheias de ranho no rosto corriam e infernizavam os últimos minutos vespertinos. Minha moradia consistia num cômodo e cozinha, bem ajambrado até. Tinha TV, um rádio elétrico, uma cama de casal que nunca fora usada para tal, um criado mudo, de fato mudo mas repleto de livros que eu comprava vez em quando num sebo da Praça João Mendes, ali pertinho. Tinha uma geladeira de segunda mão, um fogão de duas bocas das quais só uma funcionava – usava para fazer café; um armário de ferro na cozinha e um guarda roupas “marabraz” onde guardava o meu uniforme, minha arma, meus sapatos, desodorantes, roupas de domingo e às vezes a minha alma.
O corredor era dividido por mim e três famílias. Eu não conhecia ninguém. Não. Conhecia sim! Joãozinho, um daqueles moleques ranhentos já havia se apresentado uma vez. Veio pedir água, não lembro.
Esta era a minha vida: um cortiço nojento, um ônibus cheio de rotas e rotinas, uma guarita de ferro, patrões sem bom dia, noites sem sono, manhãs sem sol e um telefone alucinado com hora marcada.
Já estava em casa. Dezoito e quarenta e cinco. Já era noite. Passei lá para guardar a arma, soltar a gravata azul, pegar uns trocados e, para variar, enjoar com o cheiro forte de tempero do norte. Naquele dia igual, tudo havia sido igual, a mesma rua, o mesmo ônibus, os mesmo colegas de viagem, e claro, o telefone. Pensei, vou ao bar, beber umas e outras, potencializar o cansaço desta vida que tanto cansa e dormir, afinal amanhã ainda seria Sexta e eu tinha de ir trabalhar.
Eram mais de dez horas quando tomei o último trago. Estava visivelmente bêbado. Havia misturado vermute, conhaque, cervejas... nem sei. Cheguei em casa embriagado, acendi um cigarro na boca do fogão e queimei os cílios, mas nem liguei. Deitei sem banho e só de cuecas. Dormi em instantes. Pesado. Como nunca dormira antes. Um sono ruim, cheio de medo... o telefone tocou a noite inteira. Sonho? Pesadelo? Realidade? Gritei ! Acordei suando, corri para o banheiro que ficava fora, entrei no chuveiro e nem percebi que fazia Sol. A água era morna e agradava minha pele. Fiz a barba, senti o cheiro da espuma, do sabonete, do xampu. Era uma manhã diferente. Olhei no relógio de pulso que nem sei se era à prova d’água, apontava seis e meia, enrolei-me na toalha, espiei pela fresta da porta, corri para minha casa e no quarto, liguei o rádio. Tocava uma música tênue, Roberto, eu acho. Troquei-me com gosto e até me perfumei. Nem lembrava do paranóico telefone perseguidor de todas as manhãs. Saí. Eram seis e cinqüenta e cinco.
Caminhava tranqüilo pelo passeio indo ao encontro do ponto de ônibus. Tudo mudara, as pessoas surgiam nas janelas e davam bom dia, pássaros cantavam sonoramente, o céu estava claro – azul celeste e o Sol despontava do leste horizonte. Mirei meu destino e vi o ponto vazio e o telefone mudo. Mudo... pela primeira vez mudo, silencioso, calmo. Aquilo me deixou mais calmo.
Às sete em ponto encostei na parada do coletivo, notei que não passavam muitos carros na rua e que cada vez, muito rápido, o dia ficava mais claro. Tocou o telefone! Senti algo diferente naquela manhã. Não foi angustiante ouvi-lo. Pela primeira vez resolvi atender. Caminhei rumo ao orelhão e vi meu ônibus, fiquei em dúvida, voltei um passo mas não desisti. Atendi com um sonoro alô!
_ Geraldo ?
_ Sim, sou eu. Respondi.
_ Demoraste para atender meu chamado !
_ Quem fala, o que quer, como me conhece? Indaguei cheio de fúria.
_ Acalme-se e me ouça, Ok?
Era uma voz masculina tranqüila e suave, passava paz e eu, de fato, perdera o medo. Concordei em ouvir sem sequer responder, então, a voz macia continuou:
... Cont.
_ Geraldo querido, não tome teu ônibus e não vá trabalhar. Sente-se calmamente no meio fio e aguarde o próximo ônibus que virá sem placa de destino. Entre nele e relaxe, vc entenderá.
Ouvi a recomendação estranhando deveras, mas nem pensei em não acatar. Aguardei mais alguma palavra mas a linha caiu, sobrou para mim o típico “Tu Tu Tu” das linhas ocupadas.
Fui frente ao ponto e sentei no meio fio. Doutro lado da rua num out-door, havia uma frase: Hoje é o dia mais importante da sua vida !!! Era um anúncio de Seguros que jamais tinha visto. Na esquina, pichações grafitadas reproduziam frases de Luther King, John Lennon e Nelson Mandela, era o muro de uma escola, a qual nunca tinha notado. Vi revoadas de pardais, sabiás que cantavam em árvores e percebi no horizonte o espectro de um arco-íris. Nunca vira nada daquilo. Como?
O tal ônibus sem placa de destino apontara na rua. Pela primeira vez naquela manhã fiquei angustiado. Senti uma dor no meu peito que logo passou. Não precisei dar sinal. Ele parou.
Era um ônibus novo, bonito e confortável. Tinha bancos macios e música ambiente; o motorista era um homem gordo, vermelho, educado e sorridente. Vestia branco, um terno branco. Não havia cobrador, nem passageiros, nem cheiro de óleo diesel. Era estranho, mas confortável, confiável. Eu estava bem ali.
Sentei-me num banco bem no meio do carro, senti sono e acabei dormindo. Minutos ou horas depois, acordei com uma freada e um barulho semelhante a um burburinho de pessoas falando. Vozes infantis, femininas e maduras. Não as reconhecia, mas também não as estranhava. Levantei, caminhei para a porta e agradeci ao motorista, desci e sorrindo recebi Joãozinho que me trazia um pedaço de bolo. Ele estava limpo e bem vestido. Caminhando por entre as pessoas que estavam ali me aguardando no ponto final, reconheci o velho da marmita e cabelos ensebados, a morena de curvas salientes, o contínuo e seus fones de ouvido, o cobrador, a velha senhora. Os moradores da rua em que eu trabalhava também estavam lá, sorriam e falavam de mim, mas eu não conseguia falar com eles. Havia uma capela, um repórter e câmeras de televisão. Aproximei-me mas não me podiam ver. Vi um senhor conhecido, parceiro de copo, parceiro de bar com um jornal na mão. Por trás de seus ombros tentei a manchete, li e tudo apagou. A última coisa que me lembro ter lido foi:
“Vigia morre assassinado por grupos de extermínio num orelhão da Zona Sul. Nem pôde se defender”.
Rodrigo Augusto Fiedler
Prendeu minha atenção, como deve ser uma boa crônica. Gostei; parabéns, Rodrigo! Abraço
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