“Injustiçado”
Claudino era um homem bom, mas era esquisito, tinha vícios e manias que o faziam bobo. Às vezes era passado para trás, principalmente pelas mulheres. Ele jamais fora feliz com elas. Teve mil namoradas e uma noiva, todavia nunca emplacou um casamento. Uma delas, a Celina, jovem pernambucana que veio para São Paulo ainda jovem o amou, mas ele não. Talvez Claudino nunca tivesse amado. Nem a si próprio ele amou.
Os problemas com auto estima na cidade grande são sempre visíveis, principalmente com pessoas pouco abastadas, pobres mesmo. Claudino tinha segundo grau e um curso de defesa e segurança pessoal. Vivia de bicos em casas noturnas; às vezes pegava um “barão” do Morumbi para escoltar, mas passava mais tempo desempregado do que a ganhar dinheiro. Isso certamente mexia com seu amor próprio e hoje aos quase quarenta ele, solteiro, não tinha maiores perspectivas amorosas. Celina sumiu. Nunca mais se viram, talvez ela tenha voltado para Recife, afinal, ela aqui, na capital, fez um curso de cabeleireira e manicure. Podia ganhar uns bons trocados em Boa Viagem.
Claudino morava desde 1980 num apartamento apertado na Rua Aurora, ali no centro, perto da República e da Vitória: no coração da Boca do Lixo. Em seu prédio havia freqüentemente um desfile de personagens bizarras: Léo, um “Drag Queen” que fazia a vida imitando divas do Jazz, personificava muito bem Ella, Aretha e Bilie e, algumas canções, como “Cry me a River”, ele nem dublava, cantava de gogó. Marcão era apontador de jogo do bicho numa banca aos pés do edifício Andrauss, era gordo e usava óculos escuros fosse de dia ou de noite. Dona Terê era uma prostituta velha, de uns trinta e oito, aparentando uns cinqüenta e quatro... Ninguém sabia quem poderia ser cliente dela, mas ela sobrevivia. Havia também o Sarapatel, um jovem paraibano que cobrava nas lotações da linha Jardim Brasil/Correio e, claro, Medéia.
Medéia era uma moça linda, tinha cabelos louros e compridos, seios empinados e um quadril bem arredondado, Devia ter uns vinte e cinco. Misteriosa, ninguém sabia o que ela fazia, como ganhava a vida. Nunca chegava acompanhada, nem recebia visitas, falava pouco e mal dava bom dia no elevador. Seu perfume sim, este dava bom dia e fazia um bom dia na vida dos moradores do velho prédio. Este era o quotidiano de Claudino: um prédio velho com um porteiro quase caduco, vizinhos estranhos e muita, mas muita solidão.
Naquela noite de julho, Claudino não conseguira dormir. Sirenes e Giroflexes atordoavam o velho centro já tão atordoado. Ele foi à janela mas não podia ver grande coisa, havia neblina, cerração forte. Foi tomado então por uma grande angústia. Foi ao banheiro, abriu o espelho, pegou um Lexotan, tomou com água da torneira e sentou-se numa almofada velha que ficava sobre o tapete mais velho de sua sala: ligou a TV. Para variar o tédio dos programas da madrugada o desanimou. Desligou, tentou a cama, virou três vezes, para a esquerda, para a direita e resolveu por fim se trocar. Pôs uma calça surrada de tergal, uma camisa de algodão bastante amassada e sapatos sem meias. Esqueceu do frio e do sereno, tomou consigo a chave do apartamento e antes de sair, sob a pia da minúscula cozinha apanhou uma garrafa de vodca barata e verteu mais de um trago, do gargalo mesmo. Além do frio, esqueceu que tomara remédios. Ficou imediatamente grogue, mas nem ligou, deu de ombros e abriu a porta, saiu e nem soube se a fechou. Caminhou pelo hall e apertou o botão do elevador. Eram duas e quinze da manhã.
Já na rua, viu que o movimento policial era intenso, embora tudo parecia muito calmo. Uma enorme controvérsia: se reinava a calmaria, para que tantos soldados? Pensou.
Caminhou pela calçada procurando um bar que houvesse daquelas máquinas caça-níqueis. Encontrou um na Avenida Rio Branco. Entrou, conferiu os bolsos e desviando de alguns bolivianos e de uns homens negros africanos, nigerianos talvez, puxou um banco alto e se posicionou frente a uma máquina. Jogou mais de sete reais e na última moeda foi contemplado: ganhou algo perto de cinqüenta. Trocou as moedas por cédulas, pediu uma cerveja, um Cynar, fumou um Hollywood e foi embora.
No caminho de volta sentiu-se meio mal, viu que estava bem alterado e se lembrou do Lexotan, da cama, das sirenes e não sabia porquê, de Medéia. Naquele instante sua visão escureceu, conseguiu dar mais alguns passos e caiu no meio fio, com os braços erguidos, clamando socorro.
Em instantes ou mais que isso, acordou. Estava num apartamento decorado, cheio de neon, de badulaques e de plantas. Não reconhecia seu salvador, afinal, a visão ainda estava muito turva, mas via que era negro, e alto, e delicado. Claudino estava no apartamento de Léo, mas não conseguiu reconhecê-lo. Preferiu fechar os olhos e voltar a dormir. Eram mais de seis da manhã e ainda estava escuro.
Umas dez e meia, o cheiro forte de café misturado com o de laquê, entre outros aromas marcantes, o acordou. Ele parecia preso à cama como a “barata de Kafka”, tentou uma, duas e na terceira levantou. Era um quarto cor de rosa, com cortinas de peixinhos cor de rosa. Léo veio recepcioná-lo:
Que bebedeira heim ??? O senhor tão quietinho, quem diria??? Indagou o homossexual.
Nossa! Nem sei... afinal, como cheguei aqui? Perguntou Claudino.
O senhor estava caído numa sarjeta da Rua Aurora às cinco e meia da manhã, pedindo socorro e eu, toda montada, tive de ajudar...
As respostas de Léo não esclareciam a Claudino o que havia acontecido, ele se lembrava de ter visto as horas antes de descer à rua e não compreendia como pudera ter ficado tanto tempo na rua. Lembrava-se da máquina caça-níqueis, dos bolivianos, dos negros, do falatório típico de uma torre de babel. Lembrou-se dos quase cinqüenta que ainda tinha consigo, revirou os bolsos e não os encontrou. Em instantes Léo pediu calma e saiu do quarto, foi até a cozinha e pegou o dinheiro que tinha propositadamente tirado dos bolsos do segurança. Eram quarenta e três reais. Quarenta em cédulas de dez e três em moedas de diversos valores.
Antes de entregar ao dono, sentou-se à beira da cama e fez um carinho, que Claudino, preconceituosamente desdenhou:
- Devolva meu dinheiro, seu “bicha”!!!
Acostumado com estas atitudes vis, Léo levantou e mostrou silenciosamente o dedo médio para Claudino, fez um trejeito bem afetado e disparou:
Seu café está na mesa, seu mal agradecido...
Claudino levantou, procurou a camisa no mancebo, vestiu-a e lentamente caminhou até a cozinha onde, sobre a mesa, viu um jornal. Um jornal daquelas bem sangrentos e baratos. Abriu o tablóide e para seu espanto pôde ver uma notícia que infernizou sua manhã: “...Garota de programa é encontrada morta num beco da Boca do Lixo...”. Viu a foto, notou ser Medéia. Ah, Medéia, como era gostosa ! Como era cheirosa! Quem a haveria matado? Quem?
Naquela manhã Claudino nem tomara o café, ficou tão atordoado com a notícia que partiu sem sequer se despedir. Leonardo já estava acostumado com isso. Desceu pelas escadas os dois andares que separavam o seu andar do de Léo e ao chegar frente ao seu apartamento, o viu aberto, cheio de gente e, em específico, um homem alto, magro, com a barba por fazer e um colete da Civil.
É aqui que mora o canalha? Ele perguntava.
Seu Pires, o porteiro já quase caduco, não ouvia e fazia com que o policial tivesse de repetir com arrogância. Por pouco o chão não faltou a Claudino que espiava o movimento do hall. Tomado então de um grande pavor, recuou até as escadas de emergência e disparou para o térreo, pulando de dois em dois degraus.
Ao atingir o primeiro piso, abriu a porta corta-fogo e no lobby do velho prédio percebeu a presença de mais alguns investigadores. Tentou a garagem. Estava livre. Claudino fugiu.
Saindo pela rua, abaixou a cabeça e seguiu sem rumo para o metrô. Conferiu o dinheiro em seus bolsos: estavam lá os quarenta e três reais. Parou numa banca e comprou um exemplar do sangrento tablóide que vira na casa de Léo, o Drag Queen.
Tomou o metrô minutos depois, rumo à Barra Funda, onde sua irmã Julieta morava. No caminho leu a notícia e soube com detalhes o que havia, de fato, acontecido.
Medéia fora assassinada por um homem que, segundo testemunhas, usava calça cinza de tergal, camisa branca por fora de calça e que parecia estar embriagado. Na descrição dada pelos populares, o assassino era um pouco mais moreno do que Claudino. Alguns diziam moreno, outros negro; mas a neblina e a cerração daquela noite não possibilitavam dar como certa a cor do indivíduo. A roupa sim, esta dava...
Já na casa de Julieta, Claudino se deu conta que estava profundamente fodido. Ele fugira, as descrições apontavam para ele, não havia um álibi. O que fazer?
A arma do crime não havia sido encontrada. Uma navalha, ou gillette, não se podia prever. Os noticiários da hora do almoço, em geral, não davam estas notícias, mas naquele dia era unânime. Na emissora do “Baú”, na do “Plim Plim”, na Educativa... todas. Todas evidenciavam o crime que havia chocado o centro velho.
Pela televisão, Claudino e Julieta puderam perceber o motivo do sensacionalismo: o crime havia sido deveras cruel, com requintes dignos de um “serial killer” e isso chocara a opinião pública. Office Boys, ambulantes, bancários e comerciantes davam seus pareceres para microfones bisbilhoteiros.
Pessoas desavisadas mostravam compaixão pela vítima, outras, desvairadas, afirmavam que mulheres da vida deviam morrer, mas não daquele jeito. Medéia havia sido esquartejada, retalhada. Suas falanges tinham sido cortadas, o pescoço também. Os mamilos foram extirpados e seu sexo dilacerado. Um crime horrível, hediondo.
Claudino podia não saber o que houvera acontecido, mas sabia que não cometera aquela barbárie. Julieta cria nele. Mas só ela.
Passaram-se dois dias e Claudino sequer podia ir às ruas. A fumaça havia baixado, entretanto, todo cuidado era pouco. Nesse impasse, Claudino pensava, e pensava, e bebia, e dormia, e fugia da realidade, até que irritada com a complacência do irmão, Julieta o chacoalhou e disse:
Você precisa provar a sua inocência...
Sua foto está nos jornais do Brasil todo, seus patrões, amigos, inimigos, todos viram; não é o suficiente para você se mexer? Indagou.
Ele não sabia o que pensar, se respondia o questionamento, se chorava, se fugia, se procurava a polícia.
Claudino entrou numa profunda depressão. Ficou sentado na sala de Julieta, com os olhos embotados, com a mesma roupa mais três horas. De uma só, despertou.
Julieta, Julieta ! Já sei !!! festejou.
Ele lembrou por um instante de Doutor Sérgio Canavares, um advogado para quem trabalhara no passado, para quem prestara segurança particular.
Doutor Sérgio era um daqueles advogados canastrões, que geralmente defendia crimes polêmicos. Era um ser decadente, envelhecido, mas era tenaz e bem relacionado, ainda, nos anais da OAB.
O advogado era um sujeito ímpar. Vestia roupas que beiravam o engraçado. Não usava ternos sóbrios, preferia calças de veludo cotelê no calor que fosse com paletós de tramas xadrezes. Suas camisas tinham golas pontudas e pareciam ser todas iguais, compradas nos anos sessenta. Suas gravatas pareciam feitas de tecido de sofá, mas a retórica e a oratória do velho cabotino convencia aos mais severos juizes. Era ele, sim, era ele.
O caricato advogado tinha uma dívida de gratidão para com Claudino. Nos anos noventa, ele sofrera um atentado, enquanto defendia um criminoso confesso no fórum da João Mendes e foi Claudino quem o salvou. Claudino entrou na frente, com seu colete à prova de balas, de Doutor Sérgio. Parou com o corpo a bala que calaria o defensor. Claudino esperava sinceramente que o velho lembrasse desta ocorrência. E ele lembrava.
Ao passo que Claudino pensava em Sérgio, este, pensava em Claudino. O advogado havia reconhecido as fotos nos jornais e apiedara-se do pobre segurança. Ainda naquela tarde, Claudino não hesitou, tomou consigo o telefone, discou 102 e, em instantes conseguiu o número do antigo cliente. Ligou. Deu ocupado. Insistiu. Ouviu um alô.
Uma secretária com voz de anciã atendeu a ligação:
Escritório Canavares Associados, boa tarde !
Boa tarde... hum... por favor o Doutor Sérgio...
Um instante, vou transferir ! respondeu a secretária.
Durante a espera, Claudino sofria profundamente com a ansiedade, acirrada ainda mais pela musiquinha intermitente e desagradável. O que de fato fora menos de um minuto, parecera mais de hora. Enfim, o advogado atendeu:
Alô ! Doutor Canavares falando...
Doutor, é Claudino, fiz uma segurança particular para o senhor...
Já sei, filho, já sei. Estou acompanhando os jornais e esperava que me ligasse. Disse o jurista.
Um alívio meio mórbido tomou conta de Claudino. Não seria impossível que o velho desacreditasse da sua inocência, mas o importante era tentar.
Doutor, sabe o que é? Estão me acusando de algo que não fiz...
Eu sei, filho, eu sei...
Você é um cara bom, salvou a minha vida, me parecia sério... mas eu preciso ouvir a sua história com detalhes e depois pensar no que pode ser feito...
Doutor, pelo amor de Deus, não me desampare !
Fique tranqüilo. Disse o advogado.
A conversa se estendeu por mais alguns minutos, o suficiente para agendarem um encontro no apartamento de Julieta. Sérgio Canavares eximiu o suposto suspeito de honorários. Eles haviam sido pagos antecipadamente na Praça João Mendes.
Às nove da manhã do Domingo subsequente, estavam na Praça Buenos Aires, incógnitos por óculos escuros e chapéus, Julieta e Claudino. A tensão tomava conta deles, o medo, o pavor de serem reconhecidos estavam em evidência e o advogado canastrão demorava-se a chegar.
Enfim chegou, com um atraso pertinente: quinze minutos. Com a chegada de Sérgio, os irmãos sentiram-se incólumes e agraciados. O Doutor os abraçou, sentou-se num banco, tirou um pacote de milho para canjica e passou a dar aos pombos. Enquanto alimentava as aves, ouvia, sem um ruído sequer, a complicada história do segurança sem álibi.
Uma hora depois, com a história contada e revista, Canavares pendeu a defender o argumento da cor do assassino: negro. Ele iria se pautar nisso, afinal, não havia mais nada que se pudesse pensar, ou fazer, ou mirabolar, quiçá.
No último quarto de hora que estiveram juntos, o velho cabotino pareceu ter uma idéia. Mirou com os olhos o horizonte e consigo mesmo filosofou:
E se você procurasse, sob a minha guarda, a polícia e se entregasse, alegando, claro, sua inocência. Ao menos não precisaria viver fugindo e se escondendo e contudo, devolveria à sua irmã a liberdade de ir e vir ?
Me entregar... ? Mas, como ? Não fui eu...
E tem mais, Doutor, nesse país a justiça é morosa e ineficiente; é capaz que fique preso meses à fio até que se prove a minha inocência. Complementou Claudino.
É possível que em pouco tempo a polícia descubra o verdadeiro assassino e eu, te garanto, vou auxiliá-los...
Impossível! Não vou me entregar, prefiro fugir.
Naquele instante Claudino lembrou de Celina, seu quase amor. Pensou no quanto ela estaria feliz em sua cidade natal, cortando cabelos e fazendo unhas. Pediu ao advogado que a procurasse e que verificasse a chance dela recebê-lo em Recife. O advogado fez que sim com a cabeça, vacilante, mas fez.
O advogado logo pela manhã de segunda-feira fez o que seu novo cliente pedira. Caçou Celina na Internet, nas entidades de classe, nas autarquias. Enfim, encontrou-a. Ligou, se identificou e percebeu uma voz lacrimosa e macambúzia do outro lado da linha. Ele insistiu, mas ela não aceitou. Ele reinsistiu e ela cedeu. Claudino viajaria ainda na segunda-feira para Recife.
Sérgio conseguiu documentos falsos, um bom disfarce e algum dinheiro. Levou Claudino até o bairro do Bom Retiro, de onde partem ônibus clandestinos para todo Brasil levando sacoleiros e pequenos mascates. Assim que embarcou o segurança, foi à janela e disse:
Vou fazer o possível para livrá-lo dessa. Confie!
Confio... obrigado por tudo, me ligue quando puder voltar.
A viagem durou cerca de dois dias, não havia ar-condicionado, nem tv à bordo, apenas orações. E olha que Claudino mal sabia rezar.
A chegada em Boa Viagem foi terrível. Havia policiais revistando o ônibus em busca de drogas e armas. Apesar do pavor, Claudino se saiu bem. Caminhou por uns cem metros frente donde o coletivo havia estacionado e viu Celina. Ela o olhou placidamente, cheia de compaixão. Ele sorriu. Depois chorou. Viu por um segundo toda a sua vida, seu excesso de independência, o pouco caso que fizera da noiva no passado, sua falta de amor e sua vida estranha e duvidosa. Quis morrer.
Ela o abraçou em silêncio e não permitiu que repetisse vagos pedidos de perdão. Levou-o a um velho fusca e partiram para um casebre muito simples onde ela morava com a avó ainda viva, duas irmãs e uma legião de sobrinhos sem pais. Ele estranhou, mas aceitou coerentemente.
Passou-se mais de trinta dias e Doutor Sérgio Canavares ainda não havia ligado. Ele ligaria, certamente, mas Claudino não sabia quando.
***
A boate estava enfumaçada de tanto gelo seco e cigarro. Sabrina Furacão estava atrasada para seu show. “Divas do Jazz: Ella Fitzgerald” era o título do espetáculo. O público, predominantemente gay, estava ficando impaciente. Vaias ressonavam no salão. Freqüentadores bêbados apelavam para palavrões, outros menos etílicos, faziam-se de afetados.
Léo estava no camarim, Medéia não trouxera sua cocaína. Se ele estava atrasado para a performance, imagina Medéia, que lhe traria o combustível milagroso. Lá do camarim ele podia ouvir os gritos enfurecidos de seu público. Resolveu montar-se e ir adiante mesmo sem a dose da droga que lhe recomporia as energias. Léo era um viciado antigo. Já não sabia mais viver sem cocaína. Maconha ele detestava, álcool bebia socialmente. Seu negócio era pó.
Ao subir no palco sentiu-se mal: vertigens, sudorese e tremores. Tentou a performance, mas foi muito mal. As vaias que já eram unânimes ficaram uniformes e Léo, ou melhor, Sabrina, prostrou-se no palco, chorando muito e borrando a maquiagem.
Voltou ao camarim correndo, tirou a roupa e resolveu ir buscar sua droga sem a influência da traficante descompromissada. Saiu pela porta dos fundos da boate, tomou a rua Vitória e desceu rumo a Rio Branco, onde viu meio embriagado o pobre Claudino.
Tê-lo visto não mudou muito as coisas. Mas o encafifou. Em instantes Léo estava em contato com alguns nigerianos que lhe serviriam a droga. Não demorou.
No mesmo bar onde estava Claudino, Léo entrou, já com a droga nas mãos, foi ao banheiro e cheirou-a de uma só. Saiu sem prestar esclarecimentos aos donos e subiu a Aurora. Notou, involuntariamente, que Claudino o seguia, também involuntariamente, para o mesmo rumo: o velho prédio onde moravam. Foi naquele instante que viu, pela primeira vez naquela noite, Medéia. Ela estava aos beijos com um homem mais velho, um cara esquisito com panca de rico, estacionada do lado oposto da rua. Medéia não vira Léo, nem Claudino.
Passos após, Léo ouviu um barulho, um tombo. Olhou para trás e viu o segurança, bêbado, caído no chão. Em segundos correu e acudiu o vizinho, colocou-o nos ombros e levou-o ao prédio, por onde entraram pela garagem. Ninguém aquela hora os vira.
Léo levou Claudino ao seu apartamento e deu-lhe um ”boa noite Cinderela”. O segurança que já estava embriagado, entorpecido, dormiu profundamente.
Maquinando uma vingança contra a traficante de segunda, Léo despiu Claudino e colocou a sua roupa. Desceu à garagem, saiu de fininho e posicionou-se atrás de um poste. Conferiu a navalha no bolso esquerdo, as luvas de látex e a coragem. Ele precisara de mais uma dose do pó, mas não havia tempo. A vingança era prioridade.
Quase vinte minutos na espreita e nada. A puta continuava a se beijar com o velho nojento. O relógio caminhava e a paranóia crescia. Já era quase manhã.
Alguns noctívagos, outros populares, gays e menores de rua já pairavam antes do sol pelas cercanias da Aurora. Medéia desceu, se despediu. Então, Léo a atacou.
Com a navalha cortou seu pescoço com requinte, o sangue não espirrara. Depois tomou a palma de sua mão e estilhaçou com as falanges. Por fim, tirou seu seio esquerdo para fora e extirpou sem dó o mamilo, ainda rijos pelos beijos do velho esquisito.
Largou o corpo ali mesmo, tomou a garagem e subiu pelas escadas de incêndio. Olhou pelo vitrô e notou que populares da noite a estavam acudindo. Menores roubaram sua bolsa. Espertamente, antes de largar o corpo no chão, Léo tomara consigo os quinze papelotes de cocaína que haviam na bolsa da defunta. O crime perfeito.
Entrou em pontas de pés no apartamento e viu que o idiota do segurança ainda estava sob o efeito do calmante. Deitou-se no sofá, tentou dormir, não conseguiu. Cheirou mais um pouco, foi à cozinha e fez café. Passaram-se algumas horas. Claudino acordou.
***
Claudino caminhava pela orla de Boa Viagem. Já estava em Recife há dez meses. Doutor Sérgio ligava esparsamente e nunca tinha boas notícias. Ter fugido fora um erro. A polícia paulista tinha certeza que o segurança era o assassino. O tempo tinha passado. As possíveis provas haviam sumido. Ele já se havia amasiado. Celina já esperava um filho seu. Tudo parecia uma grande viagem pós pesadelo.
Continuou caminhando pela orla. Passou sem escrúpulos pelo posto policial. Um jovem cabo que viera de São Paulo olhou para seu rosto, mas ele não notou. O guarda correu para a internet, viu ser o suspeito, sacou seu trinta e oito do coldre e deu voz de prisão. Claudino correu, Claudino fugiu, Claudino tropeçou, Claudino caiu e depois gritou e depois morreu.
Celina nem foi avisada. Sérgio não foi avisado. Julieta não foi avisada. Foi enterrado sem documentos, como indigente num cemitério popular da Grande Recife. Sobrou pros jornais. Atrasados como sempre, contar aos seus leitores, que morrera mais um assassino, que o binômio polícia e justiça “tarda, mas não falha”. E isso tudo foi lido, por um homem quase mulher de sorrisos semicerrados, num apartamento da Rua Aurora, num banheiro azul claro, enquanto fazia-se a barba... numa velha navalha, que ainda jazia no armário, manchada de sangue.
***
Claudino era um homem bom, mas era esquisito, tinha vícios e manias que o faziam bobo. Às vezes era passado para trás, principalmente pelas mulheres. Ele jamais fora feliz com elas. Teve mil namoradas e uma noiva, todavia nunca emplacou um casamento. Uma delas, a Celina, jovem pernambucana que veio para São Paulo ainda jovem o amou, mas ele não. Talvez Claudino nunca tivesse amado. Nem a si próprio ele amou.
Os problemas com auto estima na cidade grande são sempre visíveis, principalmente com pessoas pouco abastadas, pobres mesmo. Claudino tinha segundo grau e um curso de defesa e segurança pessoal. Vivia de bicos em casas noturnas; às vezes pegava um “barão” do Morumbi para escoltar, mas passava mais tempo desempregado do que a ganhar dinheiro. Isso certamente mexia com seu amor próprio e hoje aos quase quarenta ele, solteiro, não tinha maiores perspectivas amorosas. Celina sumiu. Nunca mais se viram, talvez ela tenha voltado para Recife, afinal, ela aqui, na capital, fez um curso de cabeleireira e manicure. Podia ganhar uns bons trocados em Boa Viagem.
Claudino morava desde 1980 num apartamento apertado na Rua Aurora, ali no centro, perto da República e da Vitória: no coração da Boca do Lixo. Em seu prédio havia freqüentemente um desfile de personagens bizarras: Léo, um “Drag Queen” que fazia a vida imitando divas do Jazz, personificava muito bem Ella, Aretha e Bilie e, algumas canções, como “Cry me a River”, ele nem dublava, cantava de gogó. Marcão era apontador de jogo do bicho numa banca aos pés do edifício Andrauss, era gordo e usava óculos escuros fosse de dia ou de noite. Dona Terê era uma prostituta velha, de uns trinta e oito, aparentando uns cinqüenta e quatro... Ninguém sabia quem poderia ser cliente dela, mas ela sobrevivia. Havia também o Sarapatel, um jovem paraibano que cobrava nas lotações da linha Jardim Brasil/Correio e, claro, Medéia.
Medéia era uma moça linda, tinha cabelos louros e compridos, seios empinados e um quadril bem arredondado, Devia ter uns vinte e cinco. Misteriosa, ninguém sabia o que ela fazia, como ganhava a vida. Nunca chegava acompanhada, nem recebia visitas, falava pouco e mal dava bom dia no elevador. Seu perfume sim, este dava bom dia e fazia um bom dia na vida dos moradores do velho prédio. Este era o quotidiano de Claudino: um prédio velho com um porteiro quase caduco, vizinhos estranhos e muita, mas muita solidão.
Naquela noite de julho, Claudino não conseguira dormir. Sirenes e Giroflexes atordoavam o velho centro já tão atordoado. Ele foi à janela mas não podia ver grande coisa, havia neblina, cerração forte. Foi tomado então por uma grande angústia. Foi ao banheiro, abriu o espelho, pegou um Lexotan, tomou com água da torneira e sentou-se numa almofada velha que ficava sobre o tapete mais velho de sua sala: ligou a TV. Para variar o tédio dos programas da madrugada o desanimou. Desligou, tentou a cama, virou três vezes, para a esquerda, para a direita e resolveu por fim se trocar. Pôs uma calça surrada de tergal, uma camisa de algodão bastante amassada e sapatos sem meias. Esqueceu do frio e do sereno, tomou consigo a chave do apartamento e antes de sair, sob a pia da minúscula cozinha apanhou uma garrafa de vodca barata e verteu mais de um trago, do gargalo mesmo. Além do frio, esqueceu que tomara remédios. Ficou imediatamente grogue, mas nem ligou, deu de ombros e abriu a porta, saiu e nem soube se a fechou. Caminhou pelo hall e apertou o botão do elevador. Eram duas e quinze da manhã.
Já na rua, viu que o movimento policial era intenso, embora tudo parecia muito calmo. Uma enorme controvérsia: se reinava a calmaria, para que tantos soldados? Pensou.
Caminhou pela calçada procurando um bar que houvesse daquelas máquinas caça-níqueis. Encontrou um na Avenida Rio Branco. Entrou, conferiu os bolsos e desviando de alguns bolivianos e de uns homens negros africanos, nigerianos talvez, puxou um banco alto e se posicionou frente a uma máquina. Jogou mais de sete reais e na última moeda foi contemplado: ganhou algo perto de cinqüenta. Trocou as moedas por cédulas, pediu uma cerveja, um Cynar, fumou um Hollywood e foi embora.
No caminho de volta sentiu-se meio mal, viu que estava bem alterado e se lembrou do Lexotan, da cama, das sirenes e não sabia porquê, de Medéia. Naquele instante sua visão escureceu, conseguiu dar mais alguns passos e caiu no meio fio, com os braços erguidos, clamando socorro.
Em instantes ou mais que isso, acordou. Estava num apartamento decorado, cheio de neon, de badulaques e de plantas. Não reconhecia seu salvador, afinal, a visão ainda estava muito turva, mas via que era negro, e alto, e delicado. Claudino estava no apartamento de Léo, mas não conseguiu reconhecê-lo. Preferiu fechar os olhos e voltar a dormir. Eram mais de seis da manhã e ainda estava escuro.
Umas dez e meia, o cheiro forte de café misturado com o de laquê, entre outros aromas marcantes, o acordou. Ele parecia preso à cama como a “barata de Kafka”, tentou uma, duas e na terceira levantou. Era um quarto cor de rosa, com cortinas de peixinhos cor de rosa. Léo veio recepcioná-lo:
Que bebedeira heim ??? O senhor tão quietinho, quem diria??? Indagou o homossexual.
Nossa! Nem sei... afinal, como cheguei aqui? Perguntou Claudino.
O senhor estava caído numa sarjeta da Rua Aurora às cinco e meia da manhã, pedindo socorro e eu, toda montada, tive de ajudar...
As respostas de Léo não esclareciam a Claudino o que havia acontecido, ele se lembrava de ter visto as horas antes de descer à rua e não compreendia como pudera ter ficado tanto tempo na rua. Lembrava-se da máquina caça-níqueis, dos bolivianos, dos negros, do falatório típico de uma torre de babel. Lembrou-se dos quase cinqüenta que ainda tinha consigo, revirou os bolsos e não os encontrou. Em instantes Léo pediu calma e saiu do quarto, foi até a cozinha e pegou o dinheiro que tinha propositadamente tirado dos bolsos do segurança. Eram quarenta e três reais. Quarenta em cédulas de dez e três em moedas de diversos valores.
Antes de entregar ao dono, sentou-se à beira da cama e fez um carinho, que Claudino, preconceituosamente desdenhou:
- Devolva meu dinheiro, seu “bicha”!!!
Acostumado com estas atitudes vis, Léo levantou e mostrou silenciosamente o dedo médio para Claudino, fez um trejeito bem afetado e disparou:
Seu café está na mesa, seu mal agradecido...
Claudino levantou, procurou a camisa no mancebo, vestiu-a e lentamente caminhou até a cozinha onde, sobre a mesa, viu um jornal. Um jornal daquelas bem sangrentos e baratos. Abriu o tablóide e para seu espanto pôde ver uma notícia que infernizou sua manhã: “...Garota de programa é encontrada morta num beco da Boca do Lixo...”. Viu a foto, notou ser Medéia. Ah, Medéia, como era gostosa ! Como era cheirosa! Quem a haveria matado? Quem?
Naquela manhã Claudino nem tomara o café, ficou tão atordoado com a notícia que partiu sem sequer se despedir. Leonardo já estava acostumado com isso. Desceu pelas escadas os dois andares que separavam o seu andar do de Léo e ao chegar frente ao seu apartamento, o viu aberto, cheio de gente e, em específico, um homem alto, magro, com a barba por fazer e um colete da Civil.
É aqui que mora o canalha? Ele perguntava.
Seu Pires, o porteiro já quase caduco, não ouvia e fazia com que o policial tivesse de repetir com arrogância. Por pouco o chão não faltou a Claudino que espiava o movimento do hall. Tomado então de um grande pavor, recuou até as escadas de emergência e disparou para o térreo, pulando de dois em dois degraus.
Ao atingir o primeiro piso, abriu a porta corta-fogo e no lobby do velho prédio percebeu a presença de mais alguns investigadores. Tentou a garagem. Estava livre. Claudino fugiu.
Saindo pela rua, abaixou a cabeça e seguiu sem rumo para o metrô. Conferiu o dinheiro em seus bolsos: estavam lá os quarenta e três reais. Parou numa banca e comprou um exemplar do sangrento tablóide que vira na casa de Léo, o Drag Queen.
Tomou o metrô minutos depois, rumo à Barra Funda, onde sua irmã Julieta morava. No caminho leu a notícia e soube com detalhes o que havia, de fato, acontecido.
Medéia fora assassinada por um homem que, segundo testemunhas, usava calça cinza de tergal, camisa branca por fora de calça e que parecia estar embriagado. Na descrição dada pelos populares, o assassino era um pouco mais moreno do que Claudino. Alguns diziam moreno, outros negro; mas a neblina e a cerração daquela noite não possibilitavam dar como certa a cor do indivíduo. A roupa sim, esta dava...
Já na casa de Julieta, Claudino se deu conta que estava profundamente fodido. Ele fugira, as descrições apontavam para ele, não havia um álibi. O que fazer?
A arma do crime não havia sido encontrada. Uma navalha, ou gillette, não se podia prever. Os noticiários da hora do almoço, em geral, não davam estas notícias, mas naquele dia era unânime. Na emissora do “Baú”, na do “Plim Plim”, na Educativa... todas. Todas evidenciavam o crime que havia chocado o centro velho.
Pela televisão, Claudino e Julieta puderam perceber o motivo do sensacionalismo: o crime havia sido deveras cruel, com requintes dignos de um “serial killer” e isso chocara a opinião pública. Office Boys, ambulantes, bancários e comerciantes davam seus pareceres para microfones bisbilhoteiros.
Pessoas desavisadas mostravam compaixão pela vítima, outras, desvairadas, afirmavam que mulheres da vida deviam morrer, mas não daquele jeito. Medéia havia sido esquartejada, retalhada. Suas falanges tinham sido cortadas, o pescoço também. Os mamilos foram extirpados e seu sexo dilacerado. Um crime horrível, hediondo.
Claudino podia não saber o que houvera acontecido, mas sabia que não cometera aquela barbárie. Julieta cria nele. Mas só ela.
Passaram-se dois dias e Claudino sequer podia ir às ruas. A fumaça havia baixado, entretanto, todo cuidado era pouco. Nesse impasse, Claudino pensava, e pensava, e bebia, e dormia, e fugia da realidade, até que irritada com a complacência do irmão, Julieta o chacoalhou e disse:
Você precisa provar a sua inocência...
Sua foto está nos jornais do Brasil todo, seus patrões, amigos, inimigos, todos viram; não é o suficiente para você se mexer? Indagou.
Ele não sabia o que pensar, se respondia o questionamento, se chorava, se fugia, se procurava a polícia.
Claudino entrou numa profunda depressão. Ficou sentado na sala de Julieta, com os olhos embotados, com a mesma roupa mais três horas. De uma só, despertou.
Julieta, Julieta ! Já sei !!! festejou.
Ele lembrou por um instante de Doutor Sérgio Canavares, um advogado para quem trabalhara no passado, para quem prestara segurança particular.
Doutor Sérgio era um daqueles advogados canastrões, que geralmente defendia crimes polêmicos. Era um ser decadente, envelhecido, mas era tenaz e bem relacionado, ainda, nos anais da OAB.
O advogado era um sujeito ímpar. Vestia roupas que beiravam o engraçado. Não usava ternos sóbrios, preferia calças de veludo cotelê no calor que fosse com paletós de tramas xadrezes. Suas camisas tinham golas pontudas e pareciam ser todas iguais, compradas nos anos sessenta. Suas gravatas pareciam feitas de tecido de sofá, mas a retórica e a oratória do velho cabotino convencia aos mais severos juizes. Era ele, sim, era ele.
O caricato advogado tinha uma dívida de gratidão para com Claudino. Nos anos noventa, ele sofrera um atentado, enquanto defendia um criminoso confesso no fórum da João Mendes e foi Claudino quem o salvou. Claudino entrou na frente, com seu colete à prova de balas, de Doutor Sérgio. Parou com o corpo a bala que calaria o defensor. Claudino esperava sinceramente que o velho lembrasse desta ocorrência. E ele lembrava.
Ao passo que Claudino pensava em Sérgio, este, pensava em Claudino. O advogado havia reconhecido as fotos nos jornais e apiedara-se do pobre segurança. Ainda naquela tarde, Claudino não hesitou, tomou consigo o telefone, discou 102 e, em instantes conseguiu o número do antigo cliente. Ligou. Deu ocupado. Insistiu. Ouviu um alô.
Uma secretária com voz de anciã atendeu a ligação:
Escritório Canavares Associados, boa tarde !
Boa tarde... hum... por favor o Doutor Sérgio...
Um instante, vou transferir ! respondeu a secretária.
Durante a espera, Claudino sofria profundamente com a ansiedade, acirrada ainda mais pela musiquinha intermitente e desagradável. O que de fato fora menos de um minuto, parecera mais de hora. Enfim, o advogado atendeu:
Alô ! Doutor Canavares falando...
Doutor, é Claudino, fiz uma segurança particular para o senhor...
Já sei, filho, já sei. Estou acompanhando os jornais e esperava que me ligasse. Disse o jurista.
Um alívio meio mórbido tomou conta de Claudino. Não seria impossível que o velho desacreditasse da sua inocência, mas o importante era tentar.
Doutor, sabe o que é? Estão me acusando de algo que não fiz...
Eu sei, filho, eu sei...
Você é um cara bom, salvou a minha vida, me parecia sério... mas eu preciso ouvir a sua história com detalhes e depois pensar no que pode ser feito...
Doutor, pelo amor de Deus, não me desampare !
Fique tranqüilo. Disse o advogado.
A conversa se estendeu por mais alguns minutos, o suficiente para agendarem um encontro no apartamento de Julieta. Sérgio Canavares eximiu o suposto suspeito de honorários. Eles haviam sido pagos antecipadamente na Praça João Mendes.
Às nove da manhã do Domingo subsequente, estavam na Praça Buenos Aires, incógnitos por óculos escuros e chapéus, Julieta e Claudino. A tensão tomava conta deles, o medo, o pavor de serem reconhecidos estavam em evidência e o advogado canastrão demorava-se a chegar.
Enfim chegou, com um atraso pertinente: quinze minutos. Com a chegada de Sérgio, os irmãos sentiram-se incólumes e agraciados. O Doutor os abraçou, sentou-se num banco, tirou um pacote de milho para canjica e passou a dar aos pombos. Enquanto alimentava as aves, ouvia, sem um ruído sequer, a complicada história do segurança sem álibi.
Uma hora depois, com a história contada e revista, Canavares pendeu a defender o argumento da cor do assassino: negro. Ele iria se pautar nisso, afinal, não havia mais nada que se pudesse pensar, ou fazer, ou mirabolar, quiçá.
No último quarto de hora que estiveram juntos, o velho cabotino pareceu ter uma idéia. Mirou com os olhos o horizonte e consigo mesmo filosofou:
E se você procurasse, sob a minha guarda, a polícia e se entregasse, alegando, claro, sua inocência. Ao menos não precisaria viver fugindo e se escondendo e contudo, devolveria à sua irmã a liberdade de ir e vir ?
Me entregar... ? Mas, como ? Não fui eu...
E tem mais, Doutor, nesse país a justiça é morosa e ineficiente; é capaz que fique preso meses à fio até que se prove a minha inocência. Complementou Claudino.
É possível que em pouco tempo a polícia descubra o verdadeiro assassino e eu, te garanto, vou auxiliá-los...
Impossível! Não vou me entregar, prefiro fugir.
Naquele instante Claudino lembrou de Celina, seu quase amor. Pensou no quanto ela estaria feliz em sua cidade natal, cortando cabelos e fazendo unhas. Pediu ao advogado que a procurasse e que verificasse a chance dela recebê-lo em Recife. O advogado fez que sim com a cabeça, vacilante, mas fez.
O advogado logo pela manhã de segunda-feira fez o que seu novo cliente pedira. Caçou Celina na Internet, nas entidades de classe, nas autarquias. Enfim, encontrou-a. Ligou, se identificou e percebeu uma voz lacrimosa e macambúzia do outro lado da linha. Ele insistiu, mas ela não aceitou. Ele reinsistiu e ela cedeu. Claudino viajaria ainda na segunda-feira para Recife.
Sérgio conseguiu documentos falsos, um bom disfarce e algum dinheiro. Levou Claudino até o bairro do Bom Retiro, de onde partem ônibus clandestinos para todo Brasil levando sacoleiros e pequenos mascates. Assim que embarcou o segurança, foi à janela e disse:
Vou fazer o possível para livrá-lo dessa. Confie!
Confio... obrigado por tudo, me ligue quando puder voltar.
A viagem durou cerca de dois dias, não havia ar-condicionado, nem tv à bordo, apenas orações. E olha que Claudino mal sabia rezar.
A chegada em Boa Viagem foi terrível. Havia policiais revistando o ônibus em busca de drogas e armas. Apesar do pavor, Claudino se saiu bem. Caminhou por uns cem metros frente donde o coletivo havia estacionado e viu Celina. Ela o olhou placidamente, cheia de compaixão. Ele sorriu. Depois chorou. Viu por um segundo toda a sua vida, seu excesso de independência, o pouco caso que fizera da noiva no passado, sua falta de amor e sua vida estranha e duvidosa. Quis morrer.
Ela o abraçou em silêncio e não permitiu que repetisse vagos pedidos de perdão. Levou-o a um velho fusca e partiram para um casebre muito simples onde ela morava com a avó ainda viva, duas irmãs e uma legião de sobrinhos sem pais. Ele estranhou, mas aceitou coerentemente.
Passou-se mais de trinta dias e Doutor Sérgio Canavares ainda não havia ligado. Ele ligaria, certamente, mas Claudino não sabia quando.
***
A boate estava enfumaçada de tanto gelo seco e cigarro. Sabrina Furacão estava atrasada para seu show. “Divas do Jazz: Ella Fitzgerald” era o título do espetáculo. O público, predominantemente gay, estava ficando impaciente. Vaias ressonavam no salão. Freqüentadores bêbados apelavam para palavrões, outros menos etílicos, faziam-se de afetados.
Léo estava no camarim, Medéia não trouxera sua cocaína. Se ele estava atrasado para a performance, imagina Medéia, que lhe traria o combustível milagroso. Lá do camarim ele podia ouvir os gritos enfurecidos de seu público. Resolveu montar-se e ir adiante mesmo sem a dose da droga que lhe recomporia as energias. Léo era um viciado antigo. Já não sabia mais viver sem cocaína. Maconha ele detestava, álcool bebia socialmente. Seu negócio era pó.
Ao subir no palco sentiu-se mal: vertigens, sudorese e tremores. Tentou a performance, mas foi muito mal. As vaias que já eram unânimes ficaram uniformes e Léo, ou melhor, Sabrina, prostrou-se no palco, chorando muito e borrando a maquiagem.
Voltou ao camarim correndo, tirou a roupa e resolveu ir buscar sua droga sem a influência da traficante descompromissada. Saiu pela porta dos fundos da boate, tomou a rua Vitória e desceu rumo a Rio Branco, onde viu meio embriagado o pobre Claudino.
Tê-lo visto não mudou muito as coisas. Mas o encafifou. Em instantes Léo estava em contato com alguns nigerianos que lhe serviriam a droga. Não demorou.
No mesmo bar onde estava Claudino, Léo entrou, já com a droga nas mãos, foi ao banheiro e cheirou-a de uma só. Saiu sem prestar esclarecimentos aos donos e subiu a Aurora. Notou, involuntariamente, que Claudino o seguia, também involuntariamente, para o mesmo rumo: o velho prédio onde moravam. Foi naquele instante que viu, pela primeira vez naquela noite, Medéia. Ela estava aos beijos com um homem mais velho, um cara esquisito com panca de rico, estacionada do lado oposto da rua. Medéia não vira Léo, nem Claudino.
Passos após, Léo ouviu um barulho, um tombo. Olhou para trás e viu o segurança, bêbado, caído no chão. Em segundos correu e acudiu o vizinho, colocou-o nos ombros e levou-o ao prédio, por onde entraram pela garagem. Ninguém aquela hora os vira.
Léo levou Claudino ao seu apartamento e deu-lhe um ”boa noite Cinderela”. O segurança que já estava embriagado, entorpecido, dormiu profundamente.
Maquinando uma vingança contra a traficante de segunda, Léo despiu Claudino e colocou a sua roupa. Desceu à garagem, saiu de fininho e posicionou-se atrás de um poste. Conferiu a navalha no bolso esquerdo, as luvas de látex e a coragem. Ele precisara de mais uma dose do pó, mas não havia tempo. A vingança era prioridade.
Quase vinte minutos na espreita e nada. A puta continuava a se beijar com o velho nojento. O relógio caminhava e a paranóia crescia. Já era quase manhã.
Alguns noctívagos, outros populares, gays e menores de rua já pairavam antes do sol pelas cercanias da Aurora. Medéia desceu, se despediu. Então, Léo a atacou.
Com a navalha cortou seu pescoço com requinte, o sangue não espirrara. Depois tomou a palma de sua mão e estilhaçou com as falanges. Por fim, tirou seu seio esquerdo para fora e extirpou sem dó o mamilo, ainda rijos pelos beijos do velho esquisito.
Largou o corpo ali mesmo, tomou a garagem e subiu pelas escadas de incêndio. Olhou pelo vitrô e notou que populares da noite a estavam acudindo. Menores roubaram sua bolsa. Espertamente, antes de largar o corpo no chão, Léo tomara consigo os quinze papelotes de cocaína que haviam na bolsa da defunta. O crime perfeito.
Entrou em pontas de pés no apartamento e viu que o idiota do segurança ainda estava sob o efeito do calmante. Deitou-se no sofá, tentou dormir, não conseguiu. Cheirou mais um pouco, foi à cozinha e fez café. Passaram-se algumas horas. Claudino acordou.
***
Claudino caminhava pela orla de Boa Viagem. Já estava em Recife há dez meses. Doutor Sérgio ligava esparsamente e nunca tinha boas notícias. Ter fugido fora um erro. A polícia paulista tinha certeza que o segurança era o assassino. O tempo tinha passado. As possíveis provas haviam sumido. Ele já se havia amasiado. Celina já esperava um filho seu. Tudo parecia uma grande viagem pós pesadelo.
Continuou caminhando pela orla. Passou sem escrúpulos pelo posto policial. Um jovem cabo que viera de São Paulo olhou para seu rosto, mas ele não notou. O guarda correu para a internet, viu ser o suspeito, sacou seu trinta e oito do coldre e deu voz de prisão. Claudino correu, Claudino fugiu, Claudino tropeçou, Claudino caiu e depois gritou e depois morreu.
Celina nem foi avisada. Sérgio não foi avisado. Julieta não foi avisada. Foi enterrado sem documentos, como indigente num cemitério popular da Grande Recife. Sobrou pros jornais. Atrasados como sempre, contar aos seus leitores, que morrera mais um assassino, que o binômio polícia e justiça “tarda, mas não falha”. E isso tudo foi lido, por um homem quase mulher de sorrisos semicerrados, num apartamento da Rua Aurora, num banheiro azul claro, enquanto fazia-se a barba... numa velha navalha, que ainda jazia no armário, manchada de sangue.
***
Rodrigo Augusto Fiedler
Nenhum comentário:
Postar um comentário