De volta pra casa
Graxa, porcas, parafusos, ferramentas e saudades. Sim, eu sentia saudades das Minas Gerais de onde parti já faz mais de década para trabalhar em São Paulo. O Vale do Jequitinhonha nunca deu nada a ninguém. Só fome. Nem as ferramentas com que trabalho hoje havia por lá. Carros com motor à explosão não havia por lá. Sonhos de futuro próspero, também não havia.
Vim para São Paulo não para fazer fortuna, mas para afortunar minha vida pobre de feijão e farinha. E hoje, além do feijão e farinha, tenho a graxa que não é minha, as porcas que não são minhas e as ferramentas que também não são. As saudades sim, estas são minhas. Não sei se saí da frigideira para cair no fogo. Não fiz família, mas tentei. Tive um caso com uma moça da Bahia uns anos atrás, quis um filho dela e ela não quis. Me disse que eu não poderia ser pai, que eu não era nada e que ela aguardava a vinda dum príncipe encantado montado à cavalo... Desses brancos com patas castanhas e peito empinado. Eu era mecânico, não era príncipe. Desisti dela que vivia nos sonhos e voltei a apertar parafusos duros em blocos mais duros. Sou evangélico e essa palavra é nova. Antes me chamavam protestante e eu não entendia, que protesto? Logo eu que nunca protestei, sempre me curvei, nunca quase falei. Protestante ! O importante é que acredito em Deus. O pastor lá da igrejinha me disse um dia que se todo mês eu pagar o dízimo eu vou ficar rico no céu. Acreditei. Quem sabe no céu?
Moro na periferia, longe mesmo, dá mais de uma hora pro centro. Meu bairro inexiste dos mapas, brincam. Minha casa inexiste da rua, brinco. E eu inexisto da casa, da vida, às vezes. Já me disseram que sou que nem um morto. Mas meus olhos abrem pela manhã. Afinal, há porcas a serem apertadas, ferramentas para serem limpas e o pão precisa ser pago, o aluguel precisa ser pago, prestações das Casas Bahia precisam ser pagas, o dízimo precisa ser pago, tudo precisa ser pago. Lá, no vale, o feijão e a mandioca não eram pagos, nasciam do solo. A casa não era alugada, era de meu pai. A velha Genésia, nossa vaquinha era velha, mas era nossa. Ela pariu umas vezes e deu leite bom, depois secou as tetas e as carnes. Talvez já tenha morrido. Morreu com certeza.
Meu irmão Edivaldo veio comigo, mas deu de beber. Era servente em obra pequena e bebia durante o dia. De tanto ser mandado embora, bebeu mais e, um dia, de cama, morreu. Nem teve velório. Nem lembro se chorei. Pedi para Dona Maria da venda escrever uma carta pro pai, mas a carta voltou. Não tinha o CEP, não só o CEP, talvez lá não tivesse nem endereço e isso aqui, pelo menos, eu tenho. Eu nunca bebi, já disse, sou homem de igreja, de trabalho, não me dou com essa gente. Mas é verdade que às vezes eu tenho vontade de beber. Na verdade, uma vez, eu tinha uns doze anos, eu acho e com uns garotos da cercania fui no alambique e bebi pinga pura. Queimou a barriga, mas deixou a cabeça bem leve, Será que quem bebe tem a cabeça leve? Quem reza nem sempre! Bom, é capaz do pastor me condenar, então, é melhor assim. E meu pai? Bebia pouco, mas bebia. Também... naquele fim do mundo, fazer o que? Roça não dá o ano todo, a chuva é pouca e quando vem faz rio na rua. Aqui também. Lá é rio na terra, no chão, aqui o rio é no asfalto. Eu não entendo. Soube no verão passado de um colega da oficina que perdeu até a geladeira numa enchente. A prefeita disse que não ia alagar, mas alagou. Ninguém fala a verdade. Só Deus fala a verdade. Pensando bem, Deus não fala, quem fala é o pastor Onofre. Ele fala a verdade?
Lá na minha rua tem um rapaz, deve ter uns vinte anos. Estuda a noite e trabalha de dia no escritório. Ele usa gravata para trabalhar e eu só uso no culto de Domingo de manhã. Meu pai nunca me viu de gravata. É, aqui eu consegui uma gravata, ou será que foi Deus que conseguiu para mim? O rapaz se chama Afonso, o Afonsinho. É filho de preto com branco. Um menino vistoso, falante. Dizem que tem cultura. O pastor fala que cultura é coisa do diabo, que tem é de ter fé, mas eu gosto do papo dele. Ele diz que eu tenho que estudar. Terminar o ginásio, saber fazer carta. É engraçado, ele me disse que eu posso até ir na faculdade, mas o pastor Onofre disse que faculdade não presta, que rouba o tempo de Deus, da igreja, que custa o dinheiro de Deus. E o Afonso, fala a verdade? Às vezes eu fico perdido. Prefiro as porcas, as chaves de fenda e o meu alicate – se não falam, não mentem e ainda me dão pão, café, feijão, farinha e de vez em quando um jabá.
O Afonso também disse que eu tenho que crescer e ir buscar meu pai e minha mãe, mas minha mãe quando vim já estava doente da vista, não ia nem ver a cidade tão cinza e grande. Ah, deixa eles lá ! Quem sabe eu volte, um dia. O Afonso também já falou disso, disse que eu não sou feliz aqui, que tenho na mala saudades e vontade de ajudar meu pai. Nem sei na verdade se é saudade ou arrependimento. O empreiteiro Seu Joaquim, que me trouxe na boléia, de lá até aqui, este sim não falou a verdade, me contava estórias de homens que venciam cedo, compravam casa, faziam comércio... Comigo não aconteceu, nem com o Jonas, meu primo. Mas este se foi. Está em Belo Horizonte, eu acho. E eu na oficina que conserta motores. Dizem que a igreja conserta a vida, mas a minha vive quebrada. Tanta gente mentindo pra mim que eu acho que um dia eu vou embora. Vou pra Minas, para a minha casa. Ferrado aqui, ferrado lá. Será que Terezinha se casou ? Se não, já passou da idade. Se eu tenho trinta e quatro. Ela tem uns vinte e sete para mais.
Quando eu parti, Terezinha chorou e acenou com saudades na beira da estrada de chão que eu jurei nunca mais pisar. Ainda ouço ela dizer: Justino, Justino... Se ela é solteira caso com ela. Não é bonita, mas já era prendada. Bordava, cosia, cozinhava e tinha quadril de parideira. Dá pra boa mãe, deve soltar criança do bucho sem ajuda de parteira, e eu sempre quis ser pai. Pai que nem meu pai, que conta causo, que chora com hino, que mesmo velho era menino de brincar na lama do dia depois da chuva. Vou voltar !
Procurei o Afonso numa Sexta-feira, chovia demais e me molhei. Sua mãe, Dona Preta me pôs para dentro da garagem, ele haveria de chegar em menos de meia hora, ela confortou. Naquele dia não fui na igreja. Ainda bem que chovia, assim os irmãos lá da comunidade não poderiam me ver. Se pastor Onofre soubesse que eu faltara, ia me punir com sermão. E eu não queria ouvir. Não sei se era o diabo, se era a saudade de meu pai, de Terezinha e de minha mãe... mas algo me dizia que aquele Deus do pastor e da igreja era pior que próprio cão. Não salvava ninguém. Só tinha faminto na igreja, gente pobre mesmo. Dona Inácia pernambucana ia com pastor Onofre há mais de dez anos e morava no mesmo buraco. Comia pior que meu pai. Seu Sebastião, um cabra lá das Alagoas, vivia sendo humilhado no culto. Não pagava dízimo. Mas este, tinha até carro. Tinha relógio de pulso e paletó. Eu só tinha minhas três camisas, três calças e minha gravata. Até o macacão era da oficina. Lá me pagavam tão pouco que nem tinha poupança. Para que, perguntava o pastor.
Afonso chegou antes do que eu imaginei, agradeci Dona Preta, sua mãe e disse ao garoto que queria ir embora, de volta, pra casa, queria matar a saudade e viver a minha vida. Ele, não sei porquê, chorou. Falou que ia me ajudar e que eu precisava planejar a ida com cuidados. Fiquei frustrado, queria ir no dia seguinte.
Ele me falou que a passagem era cara e que eu tinha que guardar dinheiro, pois ele não podia me pagar o percurso. Mas eu tinha o dízimo à pagar. Ele me disse: não pague o dízimo, não vá a igreja, reze de sua cama e compre a passagem. Eu precisava além de tudo resolver o aluguel com Seu Martins, vender meus poucos móveis e comprar uma mala. Ele disse que a mala ele tinha e que um dia eu mandava de volta. Aceitei.
A chuva passou e eu fui para casa. Olhei com olhos de última vez e lembrei da rede em que dormi dezoito anos, de Terezinha e de meus pais. Pensei, não quero mais lembrar, quero rever, quero viver e tocar, quero dar o beijo que nunca dei em meu pai. Quero até beber com ele o aguardente que ficava embaixo da pia. Ouvir causos, e quem sabe fumar o palheiro. Dormi pensando naquilo. Nem sei se dormi.
Noutro dia levantei de minha cama e fui para oficina. Chamei Seu Ribeiro, o sócio do patrão. Contei a ele a decisão e ele acenou que sim. Sorriu, sorri. Ele fez meia dúzia de contas e me deu um dinheiro. Menos de mil, mas eu nunca tinha visto tanto dinheiro assim. Naquele dia, nem pus o macacão. Corri para a Praça da Sé e comprei postais de São Paulo, fui na Direita e comprei uns presentes: roupas baratas, um sapato para meu pai e um vestido para a minha mãe. Para Terezinha comprei um anel, um colar e um cartão que dizia “eu te amo”. Pensei, vou pedir ao Afonso que escreva algo mais bonito. Eu não sabia de letras mas não era tão bobo. Fui-me embora de ônibus, do Parque Dom Pedro até perto de casa. Quando cheguei fui na venda de Dona Maria perguntar se ela ainda tinha a carta que voltara de meu pai. Em cinco minutos ela entrou e saiu com o envelope na mão. Beijei o papel. Num orelhão eu parei, liguei para o número que Afonso me dera, contei o dinheiro e disse a ele a quantia que havia sobrado, ele me lembrou do compromisso com o Seu Martins e disse que sobraria o da passagem. Fui na casa de meu senhorio, paguei o aluguel, pedi para o homem que abatesse da multa o valor de meus móveis. Ele concordou. Fui então ao Tietê e comprei a passagem. Viajaria no dia seguinte.
A viagem que já era longa, parecia mais longa. Comprei com transbordo, não havia direto. O ônibus era confortável e a estrada estava reformada, em mais uma hora pararíamos em Belo Horizonte, de lá mais seis horas e eu veria os meus. Durante o caminho, pela janela eu via um filme e não a paisagem. Lembrei da infância difícil e tão dura que tive, mas era melhor do que a fase atual. Havia mais sorrisos do que trabalho, o pastor, de quem não me lembro o nome, lá da igreja metodista, era sereno. De São Paulo ficou a saudade de Afonso, Dona Preta, Edivaldo... Ai, ai... Como eu contaria para minha mãe da morte de Edivaldo? Eu ia inventar uma história, não ia contar que morreu de beber. E como explicar tantos anos de fracasso e a volta sem nada ? Será que ela tinha televisão e acompanhava as notícias das capitais? No rádio não dava notícias, só canções caipiras do tempo do onça.
Cheguei em Belo Horizonte e finalmente me senti em Minas Gerais, passei na Pampulha, vi a catedral, passei pela Afonso Pena. Tudo havia mudado. Dezesseis anos fizeram Belo Horizonte quase São Paulo. Se soubesse não tinha ido tão longe. Entendi a escolha de Jonas.
O motorista avisou que teríamos meia hora. Desci, fui tomar um café e notei na minha carteira menos de vinte reais. Bom que já estava perto e não precisaria de dinheiro na casa de meu pai. A sacola com os presentes, exceto o anel e o colar de Terezinha que estavam no meu bolso, estava no bagageiro do veículo. Não precisaria de nada. Comeria com eles o que eles tivessem para dar, tomaria banho frio se fosse necessário, e claro, eu aprendera a trabalhar e ganhar o meu sustento. Pleno dois mil e seis deveria haver uma oficina para que eu ganhasse uns trocados como mecânico auxiliar. Eu tinha fé, e não precisava de Deus, nem de pastores, nem de ninguém. Eu me bastava no meu eu. Precisava dos meus entes e óbvio, dos meus sonhos.
A viagem retomou e eu adormeci, fiquei sob o sono por dois terços da segunda etapa da viagem, acordei já num lugar familiar. O dia já se fazia amanhecendo e em menos de duas horas estaria com eles. Fechei os olhos sem dormir. Sonhei acordado.
O Sol era alto e quente, o calor insuportável e a poeira implacável. Faltavam menos de dez minutos. O cenário me era desconhecido e fui até a cabina do motorista certificar-me de que estava em destino certo. Havia muitas casas, um obra grande de perfil eleitoreiro. Não via mais as velhas fazendas semi mortas de tantos anos atrás. Tudo mudara. Fiquei apreensivo, preocupado, macambúzio...
O ônibus encostou ao lado de um prédio baixo, de dois andares. Era o final. Conceição dos Sertões. O lugar que eu deixei há mais de dez anos não era mais o mesmo. Tinha comércios, ruas de asfalto e cascalho, crianças felizes, gado gordo na rua e até um puteiro... Uma agência do Banco do Brasil, outra do Itaú. Tinha Bradesco também. Uma loja de departamentos em frente à rodoviária, que também não existia.
Mirei na rua principal, que também não existia e vi uma delegacia de Polícia, outra novidade. Fui lá. Cabisbaixo, amedrontado, perdido.
_ Boa tarde, preciso de uma informação ! exclamei.
_ Pois não senhor !!! retrucou um guarda militar.
_ Parti dessa terra há mais de dez anos, quase vinte na verdade e queria achar meus pais...
_ Quem são eles? Perguntou o policial.
_ Seu Justo Severiano da Silva e Dona Maria Milagres da Silva. Respondi.
O guarda olhou por cima de seus óculos mirando bem no meu rosto, coçou as têmporas e perguntou com voz trêmula:
_ Você é Justino ou Edivaldo ?
Me assustei com a pergunta ao passo que também me confortei.
_ Justino, e você?
_ Sou Robério da fazenda Mato Seco, filho de Teodoro, amigo de seu pai.
Fiquei feliz com o reencontro e quando fui abraçá-lo, senti que havia uma distância entre nós dois que não podia ser rompida com a minha intenção. Ele fez um sinal com a mão, pediu que eu parasse e bruscamente me informou que quando Seu Joaquim da empreiteira voltou de São Paulo, onde havia me deixado, prosperou, comprou terras e reconstruiu a cidade. Comprou as terras de meu pai e ofereceu a ele um sítio perto de Montes Claros. Na viagem para o sítio novo, um trágico acidente: o caminhão que os levava capotou na BR e morreram todos. Seu Justo e Dona Maria foram enterrados em Montes Claros, no cemitério municipal.
Engoli seco, mas não chorei. Sofri o diabo com aquilo, durou dois minutos. Olhei então para o soldado Robério e arrisquei uma última pergunta. Indaguei a respeito de Terezinha. Aí ele riu... Me disse que estava no puteiro, que vivia sendo presa, que tinha mais de três filhos, todos na rua. Pus a mão no meu bolso, peguei o anel. Aí eu chorei, chorei como nunca havia chorado antes. Robério foi atender um chamado. E eu saí sem palavras de dentro do distrito, parei num bar, abri a carteira, conferi meu trocado: doze reais. Pedi uma pinga, tomei de um só trago; pedi a garrafa, lembrei de Edivaldo, e das porcas, e parafusos, e ferramentas. Só não me lembrei da saudade.
Não havia mais saudade, nem sequer havia Deus. Havia dor.
Rodrigo Augusto Prado
Graxa, porcas, parafusos, ferramentas e saudades. Sim, eu sentia saudades das Minas Gerais de onde parti já faz mais de década para trabalhar em São Paulo. O Vale do Jequitinhonha nunca deu nada a ninguém. Só fome. Nem as ferramentas com que trabalho hoje havia por lá. Carros com motor à explosão não havia por lá. Sonhos de futuro próspero, também não havia.
Vim para São Paulo não para fazer fortuna, mas para afortunar minha vida pobre de feijão e farinha. E hoje, além do feijão e farinha, tenho a graxa que não é minha, as porcas que não são minhas e as ferramentas que também não são. As saudades sim, estas são minhas. Não sei se saí da frigideira para cair no fogo. Não fiz família, mas tentei. Tive um caso com uma moça da Bahia uns anos atrás, quis um filho dela e ela não quis. Me disse que eu não poderia ser pai, que eu não era nada e que ela aguardava a vinda dum príncipe encantado montado à cavalo... Desses brancos com patas castanhas e peito empinado. Eu era mecânico, não era príncipe. Desisti dela que vivia nos sonhos e voltei a apertar parafusos duros em blocos mais duros. Sou evangélico e essa palavra é nova. Antes me chamavam protestante e eu não entendia, que protesto? Logo eu que nunca protestei, sempre me curvei, nunca quase falei. Protestante ! O importante é que acredito em Deus. O pastor lá da igrejinha me disse um dia que se todo mês eu pagar o dízimo eu vou ficar rico no céu. Acreditei. Quem sabe no céu?
Moro na periferia, longe mesmo, dá mais de uma hora pro centro. Meu bairro inexiste dos mapas, brincam. Minha casa inexiste da rua, brinco. E eu inexisto da casa, da vida, às vezes. Já me disseram que sou que nem um morto. Mas meus olhos abrem pela manhã. Afinal, há porcas a serem apertadas, ferramentas para serem limpas e o pão precisa ser pago, o aluguel precisa ser pago, prestações das Casas Bahia precisam ser pagas, o dízimo precisa ser pago, tudo precisa ser pago. Lá, no vale, o feijão e a mandioca não eram pagos, nasciam do solo. A casa não era alugada, era de meu pai. A velha Genésia, nossa vaquinha era velha, mas era nossa. Ela pariu umas vezes e deu leite bom, depois secou as tetas e as carnes. Talvez já tenha morrido. Morreu com certeza.
Meu irmão Edivaldo veio comigo, mas deu de beber. Era servente em obra pequena e bebia durante o dia. De tanto ser mandado embora, bebeu mais e, um dia, de cama, morreu. Nem teve velório. Nem lembro se chorei. Pedi para Dona Maria da venda escrever uma carta pro pai, mas a carta voltou. Não tinha o CEP, não só o CEP, talvez lá não tivesse nem endereço e isso aqui, pelo menos, eu tenho. Eu nunca bebi, já disse, sou homem de igreja, de trabalho, não me dou com essa gente. Mas é verdade que às vezes eu tenho vontade de beber. Na verdade, uma vez, eu tinha uns doze anos, eu acho e com uns garotos da cercania fui no alambique e bebi pinga pura. Queimou a barriga, mas deixou a cabeça bem leve, Será que quem bebe tem a cabeça leve? Quem reza nem sempre! Bom, é capaz do pastor me condenar, então, é melhor assim. E meu pai? Bebia pouco, mas bebia. Também... naquele fim do mundo, fazer o que? Roça não dá o ano todo, a chuva é pouca e quando vem faz rio na rua. Aqui também. Lá é rio na terra, no chão, aqui o rio é no asfalto. Eu não entendo. Soube no verão passado de um colega da oficina que perdeu até a geladeira numa enchente. A prefeita disse que não ia alagar, mas alagou. Ninguém fala a verdade. Só Deus fala a verdade. Pensando bem, Deus não fala, quem fala é o pastor Onofre. Ele fala a verdade?
Lá na minha rua tem um rapaz, deve ter uns vinte anos. Estuda a noite e trabalha de dia no escritório. Ele usa gravata para trabalhar e eu só uso no culto de Domingo de manhã. Meu pai nunca me viu de gravata. É, aqui eu consegui uma gravata, ou será que foi Deus que conseguiu para mim? O rapaz se chama Afonso, o Afonsinho. É filho de preto com branco. Um menino vistoso, falante. Dizem que tem cultura. O pastor fala que cultura é coisa do diabo, que tem é de ter fé, mas eu gosto do papo dele. Ele diz que eu tenho que estudar. Terminar o ginásio, saber fazer carta. É engraçado, ele me disse que eu posso até ir na faculdade, mas o pastor Onofre disse que faculdade não presta, que rouba o tempo de Deus, da igreja, que custa o dinheiro de Deus. E o Afonso, fala a verdade? Às vezes eu fico perdido. Prefiro as porcas, as chaves de fenda e o meu alicate – se não falam, não mentem e ainda me dão pão, café, feijão, farinha e de vez em quando um jabá.
O Afonso também disse que eu tenho que crescer e ir buscar meu pai e minha mãe, mas minha mãe quando vim já estava doente da vista, não ia nem ver a cidade tão cinza e grande. Ah, deixa eles lá ! Quem sabe eu volte, um dia. O Afonso também já falou disso, disse que eu não sou feliz aqui, que tenho na mala saudades e vontade de ajudar meu pai. Nem sei na verdade se é saudade ou arrependimento. O empreiteiro Seu Joaquim, que me trouxe na boléia, de lá até aqui, este sim não falou a verdade, me contava estórias de homens que venciam cedo, compravam casa, faziam comércio... Comigo não aconteceu, nem com o Jonas, meu primo. Mas este se foi. Está em Belo Horizonte, eu acho. E eu na oficina que conserta motores. Dizem que a igreja conserta a vida, mas a minha vive quebrada. Tanta gente mentindo pra mim que eu acho que um dia eu vou embora. Vou pra Minas, para a minha casa. Ferrado aqui, ferrado lá. Será que Terezinha se casou ? Se não, já passou da idade. Se eu tenho trinta e quatro. Ela tem uns vinte e sete para mais.
Quando eu parti, Terezinha chorou e acenou com saudades na beira da estrada de chão que eu jurei nunca mais pisar. Ainda ouço ela dizer: Justino, Justino... Se ela é solteira caso com ela. Não é bonita, mas já era prendada. Bordava, cosia, cozinhava e tinha quadril de parideira. Dá pra boa mãe, deve soltar criança do bucho sem ajuda de parteira, e eu sempre quis ser pai. Pai que nem meu pai, que conta causo, que chora com hino, que mesmo velho era menino de brincar na lama do dia depois da chuva. Vou voltar !
Procurei o Afonso numa Sexta-feira, chovia demais e me molhei. Sua mãe, Dona Preta me pôs para dentro da garagem, ele haveria de chegar em menos de meia hora, ela confortou. Naquele dia não fui na igreja. Ainda bem que chovia, assim os irmãos lá da comunidade não poderiam me ver. Se pastor Onofre soubesse que eu faltara, ia me punir com sermão. E eu não queria ouvir. Não sei se era o diabo, se era a saudade de meu pai, de Terezinha e de minha mãe... mas algo me dizia que aquele Deus do pastor e da igreja era pior que próprio cão. Não salvava ninguém. Só tinha faminto na igreja, gente pobre mesmo. Dona Inácia pernambucana ia com pastor Onofre há mais de dez anos e morava no mesmo buraco. Comia pior que meu pai. Seu Sebastião, um cabra lá das Alagoas, vivia sendo humilhado no culto. Não pagava dízimo. Mas este, tinha até carro. Tinha relógio de pulso e paletó. Eu só tinha minhas três camisas, três calças e minha gravata. Até o macacão era da oficina. Lá me pagavam tão pouco que nem tinha poupança. Para que, perguntava o pastor.
Afonso chegou antes do que eu imaginei, agradeci Dona Preta, sua mãe e disse ao garoto que queria ir embora, de volta, pra casa, queria matar a saudade e viver a minha vida. Ele, não sei porquê, chorou. Falou que ia me ajudar e que eu precisava planejar a ida com cuidados. Fiquei frustrado, queria ir no dia seguinte.
Ele me falou que a passagem era cara e que eu tinha que guardar dinheiro, pois ele não podia me pagar o percurso. Mas eu tinha o dízimo à pagar. Ele me disse: não pague o dízimo, não vá a igreja, reze de sua cama e compre a passagem. Eu precisava além de tudo resolver o aluguel com Seu Martins, vender meus poucos móveis e comprar uma mala. Ele disse que a mala ele tinha e que um dia eu mandava de volta. Aceitei.
A chuva passou e eu fui para casa. Olhei com olhos de última vez e lembrei da rede em que dormi dezoito anos, de Terezinha e de meus pais. Pensei, não quero mais lembrar, quero rever, quero viver e tocar, quero dar o beijo que nunca dei em meu pai. Quero até beber com ele o aguardente que ficava embaixo da pia. Ouvir causos, e quem sabe fumar o palheiro. Dormi pensando naquilo. Nem sei se dormi.
Noutro dia levantei de minha cama e fui para oficina. Chamei Seu Ribeiro, o sócio do patrão. Contei a ele a decisão e ele acenou que sim. Sorriu, sorri. Ele fez meia dúzia de contas e me deu um dinheiro. Menos de mil, mas eu nunca tinha visto tanto dinheiro assim. Naquele dia, nem pus o macacão. Corri para a Praça da Sé e comprei postais de São Paulo, fui na Direita e comprei uns presentes: roupas baratas, um sapato para meu pai e um vestido para a minha mãe. Para Terezinha comprei um anel, um colar e um cartão que dizia “eu te amo”. Pensei, vou pedir ao Afonso que escreva algo mais bonito. Eu não sabia de letras mas não era tão bobo. Fui-me embora de ônibus, do Parque Dom Pedro até perto de casa. Quando cheguei fui na venda de Dona Maria perguntar se ela ainda tinha a carta que voltara de meu pai. Em cinco minutos ela entrou e saiu com o envelope na mão. Beijei o papel. Num orelhão eu parei, liguei para o número que Afonso me dera, contei o dinheiro e disse a ele a quantia que havia sobrado, ele me lembrou do compromisso com o Seu Martins e disse que sobraria o da passagem. Fui na casa de meu senhorio, paguei o aluguel, pedi para o homem que abatesse da multa o valor de meus móveis. Ele concordou. Fui então ao Tietê e comprei a passagem. Viajaria no dia seguinte.
A viagem que já era longa, parecia mais longa. Comprei com transbordo, não havia direto. O ônibus era confortável e a estrada estava reformada, em mais uma hora pararíamos em Belo Horizonte, de lá mais seis horas e eu veria os meus. Durante o caminho, pela janela eu via um filme e não a paisagem. Lembrei da infância difícil e tão dura que tive, mas era melhor do que a fase atual. Havia mais sorrisos do que trabalho, o pastor, de quem não me lembro o nome, lá da igreja metodista, era sereno. De São Paulo ficou a saudade de Afonso, Dona Preta, Edivaldo... Ai, ai... Como eu contaria para minha mãe da morte de Edivaldo? Eu ia inventar uma história, não ia contar que morreu de beber. E como explicar tantos anos de fracasso e a volta sem nada ? Será que ela tinha televisão e acompanhava as notícias das capitais? No rádio não dava notícias, só canções caipiras do tempo do onça.
Cheguei em Belo Horizonte e finalmente me senti em Minas Gerais, passei na Pampulha, vi a catedral, passei pela Afonso Pena. Tudo havia mudado. Dezesseis anos fizeram Belo Horizonte quase São Paulo. Se soubesse não tinha ido tão longe. Entendi a escolha de Jonas.
O motorista avisou que teríamos meia hora. Desci, fui tomar um café e notei na minha carteira menos de vinte reais. Bom que já estava perto e não precisaria de dinheiro na casa de meu pai. A sacola com os presentes, exceto o anel e o colar de Terezinha que estavam no meu bolso, estava no bagageiro do veículo. Não precisaria de nada. Comeria com eles o que eles tivessem para dar, tomaria banho frio se fosse necessário, e claro, eu aprendera a trabalhar e ganhar o meu sustento. Pleno dois mil e seis deveria haver uma oficina para que eu ganhasse uns trocados como mecânico auxiliar. Eu tinha fé, e não precisava de Deus, nem de pastores, nem de ninguém. Eu me bastava no meu eu. Precisava dos meus entes e óbvio, dos meus sonhos.
A viagem retomou e eu adormeci, fiquei sob o sono por dois terços da segunda etapa da viagem, acordei já num lugar familiar. O dia já se fazia amanhecendo e em menos de duas horas estaria com eles. Fechei os olhos sem dormir. Sonhei acordado.
O Sol era alto e quente, o calor insuportável e a poeira implacável. Faltavam menos de dez minutos. O cenário me era desconhecido e fui até a cabina do motorista certificar-me de que estava em destino certo. Havia muitas casas, um obra grande de perfil eleitoreiro. Não via mais as velhas fazendas semi mortas de tantos anos atrás. Tudo mudara. Fiquei apreensivo, preocupado, macambúzio...
O ônibus encostou ao lado de um prédio baixo, de dois andares. Era o final. Conceição dos Sertões. O lugar que eu deixei há mais de dez anos não era mais o mesmo. Tinha comércios, ruas de asfalto e cascalho, crianças felizes, gado gordo na rua e até um puteiro... Uma agência do Banco do Brasil, outra do Itaú. Tinha Bradesco também. Uma loja de departamentos em frente à rodoviária, que também não existia.
Mirei na rua principal, que também não existia e vi uma delegacia de Polícia, outra novidade. Fui lá. Cabisbaixo, amedrontado, perdido.
_ Boa tarde, preciso de uma informação ! exclamei.
_ Pois não senhor !!! retrucou um guarda militar.
_ Parti dessa terra há mais de dez anos, quase vinte na verdade e queria achar meus pais...
_ Quem são eles? Perguntou o policial.
_ Seu Justo Severiano da Silva e Dona Maria Milagres da Silva. Respondi.
O guarda olhou por cima de seus óculos mirando bem no meu rosto, coçou as têmporas e perguntou com voz trêmula:
_ Você é Justino ou Edivaldo ?
Me assustei com a pergunta ao passo que também me confortei.
_ Justino, e você?
_ Sou Robério da fazenda Mato Seco, filho de Teodoro, amigo de seu pai.
Fiquei feliz com o reencontro e quando fui abraçá-lo, senti que havia uma distância entre nós dois que não podia ser rompida com a minha intenção. Ele fez um sinal com a mão, pediu que eu parasse e bruscamente me informou que quando Seu Joaquim da empreiteira voltou de São Paulo, onde havia me deixado, prosperou, comprou terras e reconstruiu a cidade. Comprou as terras de meu pai e ofereceu a ele um sítio perto de Montes Claros. Na viagem para o sítio novo, um trágico acidente: o caminhão que os levava capotou na BR e morreram todos. Seu Justo e Dona Maria foram enterrados em Montes Claros, no cemitério municipal.
Engoli seco, mas não chorei. Sofri o diabo com aquilo, durou dois minutos. Olhei então para o soldado Robério e arrisquei uma última pergunta. Indaguei a respeito de Terezinha. Aí ele riu... Me disse que estava no puteiro, que vivia sendo presa, que tinha mais de três filhos, todos na rua. Pus a mão no meu bolso, peguei o anel. Aí eu chorei, chorei como nunca havia chorado antes. Robério foi atender um chamado. E eu saí sem palavras de dentro do distrito, parei num bar, abri a carteira, conferi meu trocado: doze reais. Pedi uma pinga, tomei de um só trago; pedi a garrafa, lembrei de Edivaldo, e das porcas, e parafusos, e ferramentas. Só não me lembrei da saudade.
Não havia mais saudade, nem sequer havia Deus. Havia dor.
Rodrigo Augusto Prado
Rodrigo Augusto Fiedler
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